Algumas Coisas Que Assustam os Homens - Parte 3

Recalque e Auto-afirmação

O cabelo liso que se encaracolava nas pontas era dotado de um negrume de gato preto na fábrica de carvão à meia noite e a pele contrastava de forma altiva com o cabelo; branca, imaculadamente branca e leitosa. Acrescente lábios naturalmente vermelhos e um nariz comprido, aristocrático. Ela tinha um perfil de tirar o fôlego. E veio puxar conversa comigo numa noite qualquer e bom, conversamos, mas não aconteceu nada. Trocamos e-mail e telefone. Conversando no MSN ela se mostrou bem legal. Escrevia tudo direitinho, sem abreviações grotescas, sem colocar M onde deve ser colocado e N, não dava risada com rsrs e bom, as letras que ela digitava eram só letras e não emoticons – tem aquelas pessoas que digitam OI TUDO BEM e cada letra do OI TUDO BEM é um emoticon diferente e a janela da conversa fica parecendo uma alegoria de ursinhos loucos. Ela também não mandava winks e não ficava ouvindo Nx Zero e derivados enquanto conversava comigo. Era uma boa pessoa. Então nos encontramos por aí e ela estava bem mais bonita do que no primeiro dia. Beijamos. Mas faltava alguma coisa. Dá pra ficar com as pessoas sem amor, mas faltava alguma coisa. Caí na besteira procurar o que faltava e descobri: ela não podia ver mulher nenhuma que já começava com comentários irritantes do tipo:

- Olha que blusa horrível.

- Aff, aquela saia tá muito vulgar.

- Eu sou mais eu.

- Eu sou bela.

- Bolinha não combina com xadrez.

Ou então com lugar comum auto-afirmativo falando:

- Não ligo pro que os outros pensam de mim.

- Não gostou de mim foda-se.

Ou ia mais além tentando parecer engajada se engajando em se contradizer a todo minuto:

- Se o cara quer fumar maconha, o que é que tem? A vida é dele, deixa ele fazer o que quer. Só não vem fumar perto de mim.

- Eu odeio maconha. Até gosto, mas odeio.

E ela ficava mais linda ainda falando essas coisas. Só que eu tinha mais o que fazer do que ficar ouvindo conselhos sobre como uma mulher deve se vestir e críticas sobre as roupas dos outros e essa enxurrada de auto-afirmação do tipo "eu sou mais eu" e contradições de opinião acerca da maconha. Eu tinha mais o que fazer. E assim como seu cabelo contrastava com a sua pele nos extremos opostos da cor, sua beleza exterior contrastava com a sua feiúra interior. Outro dia, via MSN, ela perguntou "Eae, quando eu vou te ver novamente?" no que eu respondi "Quando você tiver afônica me avisa". Ela perguntou o que era "afônica", pesquisou no Google e falou "não entendi o que você quis dizer". Não expliquei. Eu tinha mais o que fazer.

Rafael P Abreu
Enviado por Rafael P Abreu em 08/07/2010
Reeditado em 19/03/2011
Código do texto: T2366768
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