O Avião
Especialistas afirmam, sonhar pouco não é bom. Debilita a personalidade, embota a criação, alavanca paranóias, enfim, desequilibra a alma, criando todo um leque de distúrbios. O sono sem o sonho é, em si, incompleto, pois descansa o corpo, mas não o espírito. A falta deles cria muitos vazios, suficientes para a transformação da vida em sobrevivência e desta em ...sabe-se lá o quê. Poucos sonhos, portanto, trazem estragos. Nenhum? Enlouquece, dizem eles, os especialistas. Não sou um deles, mas sei algo sobre sonhos. Sei que tê-los com fartura, nunca nos deixam fartos. Um deles em especial, por sua insistência e repetição, me trouxe um tema, um motivo, uma centelha: a paixão pelos caças. E o fogo que ele acendeu aquece até hoje os meus dias, espantando o tédio de horas inócuas, desligando minha mente de problemas contra os quais sou impotente, amalgamando novos amigos, propiciando encontros, reuniões e tantos bons motivos para que eu saia de mim mesmo.
Caças são aviões feitos para a furtividade, tanto no ataque como na defesa. Costumam ter o céu como aliado, quase um cúmplice, quando os escondem na imensidão. Talvez seja isso o que mais me impressione nesses pilotos. A frieza necessária do ir adiante, quando de um extremo ao outro, saem da invisibilidade conveniente para as miras dos canhões de outrora ou dos mísseis de hoje. Mas prosseguem, têm que prosseguir, nem pensam em esmorecer. Mas nada fica impune, quando o radar do inimigo os localiza, testando suas habilidades, com toda a pressão psicológica que a perda do anonimato possa causar. Afastando qualquer possibilidade de desmerecimento. É assim que, no meu caso, aviação deixa de ser apenas um hobby e, aos poucos, avizinha valores que transcendem hélices, motores e asas, pois, parodiando Eliot, volto a eles com a mente dos pilotos, para verdadeiramente enxergá-los pela primeira vez.
Entre meus dez e doze anos, sucessivos sonhos, nos quais eu pilotava um mesmo modelo de avião, foram se dando como num filme. Desdobrou seus capítulos em vários segmentos, totalizando dez. Embora monomotor e antigo, esse avião a mim parecia muito veloz e ágil. A cada novo sonho, com espaços bem irregulares entre um e outro, voltava à cena sempre ele: o mesmo avião. Mas a repetição da aeronave não comprometia o prazer do que era sonhado, pelo contrário, trazia a forte impressão de que o sonho não era meu, mas dela. A cada nova experiência, um novo truque eu aprendia, uma nova manobra especial, o melhor uso dos seus limites, a leitura adequada dos instrumentos, enfim, o avião me conduzia. O intervalo de tempo bem irregular era, porém, crescente, pois entre o primeiro e o segundo sonho, passou-se apenas uma semana, enquanto que do segundo para o terceiro amarguei mais de um mês de espera. E assim foi, progressivamente, de tal modo que entre o penúltimo e o último, vários meses se deram.
Dizem que todos nós nascemos com certos dons e que durante nossas vidas eles acabam, mais cedo ou mais tarde, se manifestando, seja pelo fato de criarmos condições para exercê-lo ou por nos depararmos com alguma situação que nos force a mostrá-lo. Isso, claro, quando não temos ainda a certeza de possuí-lo. E eu tenho um bom exemplo para isso, quando com 16 anos, descobri ser capaz de escalar um muro com pouco mais de três metros e paredes quase lisas. Eu cheguei a ele com tanta velocidade e determinação, que meu pé direito o tocou numa altura elevada o suficiente para que, com o impulso da corrida, minhas duas mãos alcançassem facilmente o seu topo. Consegui, satisfeito, sentar em cima do mesmo para caçoar, olhando para baixo, do estímulo que me levou até ali: o pastor alemão do vizinho que, detestando crianças, havia escapado para a rua. Essa experiência me rendeu uma vaga de titular no time de basquete do colégio nos meus três anos no 2º. Grau. Eu tinha fama de ter boa impulsão e com treinamento adequado enterrei muitas bolas sem grandes dificuldades, embora meu 1,78m de altura não sugerisse isso. Talvez sem o estímulo dado por aquele cão, eu nunca viesse a saber que tinha boas pernas. Mas ter o dom de pilotar um avião não é o tipo de coisa que um moleque venha a precisar para garantir sua sobrevivência. Porém, caso uma situação inusitada como essa ocorresse, eu tenho certeza que me daria, senão bem, menos mal que a grossa maioria das pessoas, graças àquelas aulas de vôo que meu subconsciente fez em dez lições ou sonhos, na minha adolescência.
“Quem mata uma pessoa para defender uma idéia, não defende uma idéia, mas mata uma pessoa”.Tomei conhecimento dessa frase num filme francês. Não sei de quem é, mas a achei muito oportuna para explicar um dado interessante sobre esses sonhos meus. Isso porque, logo no segundo, nessa série de dez, percebi estar pilotando uma arma. Era com certeza um avião de guerra. O padrão de camuflagem das asas, e a evidente mira telescópica bem acima do painel, deixava isso tudo muito claro. Enquanto o primeiro sonho explorou detalhes sobre os instrumentos, o segundo me trouxe, entre outras coisas, o local exato dos gatilhos das armas na forma de botão no manche. Porém, em nenhum momento, elas foram acionadas, mas não posso negar que a presença das mesmas me confortava, tornando tudo aquilo mais adulto, imponente e real, razões suficientes para sonhos ainda mais consistentes e verossímeis, como um seriado de televisão, cujos capítulos o garoto não pode perder em hipótese alguma. Mas, de tão ansioso com a chegada dos próximos segmentos, percebi que isso os distanciava. Sendo assim, passei a usar truques para me acalmar. Tiro e queda. Era só me aquietar e o próximo capítulo acabava vindo, sempre acrescentando dados novos sobre o avião e a sua correta pilotagem. No entanto, quando digo que a aeronave parecia querer me ensinar algo, pilotá-la, por exemplo, não estou sendo de todo verdadeiro com a sensação que de fato eu tinha. Seria mais correto que eu dissesse que ela estivesse apenas me lembrando como usá-la, pois dava empurrões, fortalecendo minha autoconfiança em situações que, aparentemente, eu já havia vivido. E, assim, bastava uma primeira manobra meio insegura, para que eu fizesse as demais sem qualquer interferência do medo, mas sim com um prazer indescritível. Um rasante numa floresta se deu assim, culminando com a passagem entre dois pinheiros altos, depois dos quais puxei o manche para a minha barriga, garantindo um solene ganho de altura que fez meu estômago visitar, mesmo que por alguns segundos, as minhas nádegas. Já lá em cima, fiz um parafuso lateral à direita, jogando o manche para o mesmo lado e contando rapidamente até seis, pois descobri, ou “lembrei”, que esse era o tempo necessário para que o aparelho voltasse à posição original nivelada.
Ainda com relação à citação do filme francês, os sonhos me traziam uma forte sensação de patriotismo ou algo no gênero, como se eu não tivesse outra opção senão aquela: a de voar com uma arma para defender um lugar que eu ainda não sabia qual era. Porém, tal qual na vida real, não matei ninguém em nome de motivo algum. Embora esse meu lugar ainda não tivesse um nome, com muita curiosidade, eu o procurava, traduzido em algum símbolo pintado na superfície superior das asas ou em alguma outra região da fuselagem que eu pudesse ver. Isso porque em todas as dez vezes, os sonhos sempre iniciavam e terminavam comigo e o aparelho no ar, voando. Minha visão da máquina se limitava àquela da cabine fechada comigo lá dentro. Na frente eu via a hélice girando com o vigor de um furacão e a parte do nariz mais próxima do início do para-brisa. Conseguia facilmente ver as duas asas, mas para visualizar os profundores, aquelas asas menores da cauda, tinha que torcer o pescoço para trás e para o lado, esquerdo ou direito, e encostar com força minha testa nos vidros laterais. Seria algo semelhante a se estar dirigindo um caminhão com cabine sem visão traseira e com todos os vidros fechados, sem retrovisores. Caso eu quisesse ver algo se aproximando por trás e pelos lados nos sentidos nove e três horas do ponteiro menor do relógio, eu virava a cabeça para o lado desejado, espremia o rosto contra o interior do vidro, forçando os olhos para trás. Nas poucas vezes que fiz esses movimentos incômodos, pude sentir na pele do meu rosto espremida no vidro, que sem ele, por certo eu estaria congelado. Fiz isso apenas duas vezes, contentando-me em inferir sobre a temperatura externa, apenas tirando a mão de uma das luvas para encostar seu dorso em vários pontos da parte envidraçada da cabine. Olhar as asas era bem mais fácil, mas só lhes dei atenção a partir do terceiro sonho, pois o primeiro e o segundo se concentraram em detalhes do interior. Instrumentos frontais, laterais, assento e ajustes do mesmo, como também, o voo com o horizonte sempre à frente e algumas tímidas primeiras manobras para baixo (seis horas), para cima (doze horas) e para os lados (nove e três horas).
O terceiro sonho trouxe informações sobre qual seria esse meu lugar, que eu, pilotando aquela arma, tinha que defender. Explorou fuselagem, geometria e comprimento de asas. A camuflagem era evidente, com linhas retas e não sinuosas separando os tons que pareciam ser variações entre o cinza e o chumbo, se bem que (soube mais tarde) sonhos não costumam expressar cores e, sendo assim, não usei aqueles tons como referência, a não ser que eles se assemelhassem com as fotos em preto e branco de aeronaves que eu via em livros e revistas. Finalmente, as marcas do meu lugar, pintadas não muito próximas às pontas das asas, eram bem visíveis. Eram cruzes simétricas, como essas que vemos em ambulâncias. Mas não eram vermelhas e sim brancas, como também, suas duas astes dispostas de modo perpendicular, tinham apenas os contornos laterais pintados e não os interiores e pontas. Logo depois que acordei, no dia seguinte, poderia ter perguntado ao meu pai a que país ela pertencia, mas esse não era o meu estilo, pois ir atrás das coisas por minha própria conta me emocionava bem mais. A pesquisa até que foi rápida e não foi difícil saber que, nos sonhos, eu pilotava ou era pilotado por um avião alemão. Quando relembro aquela tarde na biblioteca da escola, olhando um deles com o mesmo símbolo, num periódico sobre a segunda guerra, o mesmo arrepio ainda hoje é capaz de eriçar meus pelos. A partir daquele momento passei a considerar, com todo o vigor da fantasia típica de um garoto de dez anos, que Deus parecia estar querendo me dizer algo e, mais do que nunca, não quis que aqueles sonhos parassem, mas sim durassem o tempo suficiente para que eu entendesse a mensagem. Fiz um pacto de silêncio em relação ao assunto, pois não poderia dividir com ninguém aquilo que Deus me dissesse. Se eu vinha merecendo Sua confiança, perdê-la seria cessar os sonhos e voltar a voar naquele avião era tudo o que eu queria. Assim que acordava, anotava num caderno detalhes que me chamavam a atenção e que, portanto, mereciam pesquisas mais profundas. O fato das florestas sobre as quais eu voava, por exemplo, não parecerem brasileiras. Várias árvores sugeriam regiões frias, embora em nenhum dos dez sonhos eu visse neve. Mas muitos arbustos menores mostravam aquelas colorações pardas e avermelhadas comuns ao outono de países com clima temperado. Isso me estimulou a estudar com mais empenho a fisiologia comparada das plantas, tropicais ou não, me aproximando, por fim, da biologia. Comecei também a ler muito sobre a Alemanha na segunda guerra, pois meu avião combinava com o estilo das máquinas daquele lugar e época. E, sendo esse o caso, uma situação delicada surgiu: o tal do nazismo. Li bastante sobre isso. Conforme lia, mais me preocupava. Eu estava sendo nazista nos meus sonhos? Eu precisava me conhecer melhor para responder isso. Eu fui nazista em alguma outra vida? Bem, nesse caso não me preocupei muito, pois, se verdadeiro, eram águas passadas. Selecionei obras que me pareciam mais imparciais sobre esse momento da história. Não me esqueci também de me inteirar sobre as questões espíritas, embora fizesse isso sem muito empenho, pois entre Allan Kardec e “A Interpretação dos Sonhos” de Freud, as idéias do pai da psicanálise me apeteciam bem mais. Quanto à possibilidade do meu nazismo, não conseguia ver a cauda do meu avião, pois era lá que o impressionante símbolo costumava ficar. Uma boa sensação, no entanto, me confortava: independentemente do meu avião carregar ou não uma suástica no seu leme, nos sonhos eu não me sentia um nazista, mas um jovem e apaixonado piloto, obcecado por voar e não por defender causas ou lugares. Tanto que, lá pelo quarto segmento, minha atenção com detalhes do avião progrediu até o décimo, diluindo completamente o vigor daquela sensação inicial, patriótica. Quero dizer que, a partir de um dado momento, o avião era só meu, fosse ele francês, inglês, italiano, russo, alemão ou qualquer outro. Minha intimidade com a aeronave sentia prazer em explorar os seus detalhes. Sua nacionalidade era apenas um deles, incapaz de ofuscar os demais. Alie-se a isso o fato de, desde muito pequeno, eu ter uma tendência mais forte para o dito lado esquerdo da política, descartando a direita e, bem mais, as suas extremidades. Ditaduras, portanto, sempre as odiei, estivessem elas em qualquer um dos lados. Mesmo porque, em se tratando de direita e esquerda, só as do avião me interessavam. As outras tantas eram coadjuvantes e eu, curioso, as pesquisava, mas procurava sempre desviar meu leme das paixões. E nesse vai e vem frenético de informações que os sonhos me inspiravam, a apenas uma eu rendi meus mais sinceros respeitos e francos tributos. Os homens que construíram aquelas máquinas e aqueles que as pilotavam, eles sim sabiam o que estavam fazendo e, com certeza, puseram muito amor nisso, mesmo que a reboque, outras paixões questionáveis viessem. Quando hoje escrevo sobre esses momentos da minha adolescência, lembro-me que, excetuando o anti-semitismo visceral dos alemães, até certo ponto, mesmo a minha meninice imatura perdoava muitos dos seus excessos. No que li, levei em conta as inúmeras humilhações impostas pelo Tratado de Versalhes aos então perdedores da primeira grande guerra e, numa espécie de identificação, tomei as suas dores, do mesmo modo que hoje me irrito profundamente com o pouco caso do mundo com o jeito supostamente subdesenvolvido do latino ser, impondo-nos restrições técnicas e econômicas há décadas, às quais reagíamos apenas esperneando para, finalmente, só mais recentemente conseguir, em boa parte, nos livrar. Comparava os alemães daquela época a esses meninos e meninas injustiçados por pais autoritários e cruéis, que lhes tolhem toda e qualquer energia criativa ou intelectualidade nascente. Tinha um bom exemplo disso bem ao meu lado esquerdo, na sala de aula do colégio. Era o Inácio, pobre coitado, ficava constrangido até quando não conseguia evitar uma tosse, por exemplo, imaginando quebrar alguma regra com isso. Li o que pude sobre a juventude alemã dos anos 30, pois eram garotos como eu e, antes de tudo, viviam no país que fez o tão amado avião dos meus sonhos. Diferentemente do Inácio, esses jovens alemães tinham ao menos a opção de por algo no cérebro, além de recalques e punições. Eu, provavelmente, teria sucumbido a tanta imposição alheia de valores, uma vez que, desde o berço, trago comigo um certo anarquismo quase crônico. Mas não generalizo os outros por mim e percebo que se sentir parte de algo grande e crescente, nazi-fascista ou não, que viesse alavancando com eficiência a recuperação da economia, auto-estima e dignidade do meu povo, seria uma forte arma de convencimento. Do mesmo modo que, com meus dez anos, eu já me encantava com qualquer avanço social, tecnológico ou econômico que meu glorioso e amado país tropical viesse a fazer. Memorizava com respeito os nomes de seus protagonistas (Getúlio, Juscelino e outros) que, por muita sorte, não teve um Hitler entre eles. E se tivesse? –eu me perguntava na época. E se tivesse? – eu me pergunto até hoje. Seria eu, seduzido pelo avanço do meu país, capaz de separar o joio do trigo? Creio que seria e, talvez pela minha própria natureza crítica, fosse morto ou preso como traidor antes do término daquela guerra. Isso é claro, caso não fosse atingido em minha aeronave, o que suponho ter ocorrido no meu décimo e último sonho, como citarei mais tarde.
O bom senso talvez fizesse essas crianças alemãs, quando adultas, parar por aí, mas seus egos não foram inflados por seu líder para que parassem assim, por aí. Hitler foi muito útil a eles no começo, bem como a todo povo alemão no início, mas pensou só em si daí por diante, pois se o povo quisesse seguir com dignidade, não tinha outra opção senão a do partido. Pais nele, no partido, e filhos nelas, nas ligas para crianças do Reich, as Bund Deutscher. Era assim que tinha que ser ou, melhor dizendo, só assim, ser era uma possibilidade. E quando não se consegue ser o suficiente, muitos fanatismos são praticados em nome de essências falsas e sem substância, pois, mesmo temporariamente, elas preenchem o vazio. Não me refiro à perseguição aos judeus, pois esse era um dos pilares meticulosamente calculado pelo partido na sua ascensão, ou seja, não foi um ato espasmódico e irracional, coisa de fanáticos sem controle, mas uma ação elaborada para a concentração máxima de renda no estado, surrupiando aquela da fatia mais rica da população. Foi, portanto, coisa de fanáticos conscientes. Quanto à rotina do povo em geral, são muito questionáveis os valores que se acabam adquirindo num ambiente como esse, onde a sobrevivência do mais apto confunde a própria aptidão. Ter certas cores e formatos de olhos, bem como medidas de crânio, queixo e etc. poderiam abrir algumas portas arianas, mas, quanto ao alemão médio, creio que a aptidão em ficar quieto e falar o mínimo possível era sua melhor garantia de sobrevivência. Porém, se você tivesse habilidade de produzir uma máquina como aquela dos meus sonhos, não bastaria saber fazê-la, teria que estar no partido para tal. Meus dez anos imaginavam que estar nele não significasse necessariamente abraçá-lo. Do mesmo modo que o Inácio não pensava em fugir de sua casa, embora, que eu saiba, nunca tenha abraçado seu próprio pai. Foi assim que eu consegui transcender aquelas cruzes brancas da Luftwaffe nas asas do meu avião e achá-las, inclusive, muito bonitas. Torcia para que a seqüência de sonhos separasse ao menos uma noite para um vôo conjunto com todos os demais pilotos, inimigos ou não. Numa espécie de confraternização, juntos e lado a lado, faríamos o prazer de a pilotagem superar toda e qualquer desavença, explorando com manobras os recursos de cada uma de nossas máquinas. Tenho certeza que a bola vermelha do sol nascente, na asa do Zero japonês, faria ainda mais sentido, quando ele subisse aos céus com sua incrível velocidade de ascensão. Do mesmo modo teria o prazer de ver as circunferências vermelhas, brancas e azuis nas asas do Dewoitine francês, embaralharem a minha visão com suas ágeis manobras laterais. Parabenizaria os brasões das asas do Folgore italiano, com suas linhas arrojadas e fortes. Respeitaria também as galantes estrelas vermelhas daquele Yakolev russo imponente, com suas saudações a Stalin, logo abaixo do lado esquerdo de sua cabine, cujo piloto me acenaria. Contemplaria sem desdém as bonitas marcas inglesas, azuis e vermelhas, nas asas do esguio Spitfire e faria o mesmo, com sinceridade, pelo belo Thunderbolt americano que me desse o prazer da companhia. Seria um sonho magnífico e eu, com certeza, também os impressionaria de algum modo com as habilidades do meu Messerschimitt e suas inconfundíveis cruzes brancas nas asas. Talvez num sonho assim, tão inverossímil, as suásticas do leme do meu avião fossem perdoadas pelo piloto francês, o russo, o inglês e o americano e, mesmo enaltecida pelo japonês e o italiano, não redundasse em embates, pois sem as marcas na fuselagem de cada um dos nossos modelos, tais não existiriam. Creio que a impossibilidade de um sonho como esse, resultou na solidão autocontemplativa daqueles que realmente tive na minha adolescência. Talvez por isso mesmo, meu subconsciente me pusesse sempre dentro desse meu avião, impossibilitando, quanto ao leme traseiro, qualquer visão. Ele, com certeza, me poupou da suástica e do conseqüente desassossego em carregá-la. A propósito, sei que era um Messerschimitt Bf-109, provavelmente versão F. Depois de muita insistência, meu pai me levou a uma loja especializada na venda e montagem de réplicas e eu o vi lá. Quase desmaiei em frente à vitrine. “Você comeu direito no café da manhã?” - ele me perguntou. Ganhei dele um 109 para montar na escala 1:32, como também, um livro sobre a Luftwaffe e tive que lhe convencer, com muito empenho, que a questão nazista nada tinha a ver com a minha escolha. Sendo filho de alemães, talvez meu pai visse no meu interesse uma espécie de atavismo cultural e, portanto, compreensível, aceitável. Porém, penso que, no fundo, ele gostasse de me ver afundado em livros e revistas, pesquisando sobre o aspecto e a forma de plantas de climas temperados, a psicanálise freudiana, a história da segunda grande guerra, o porquê das políticas de esquerda, centro e direita, o funcionamento básico de motores de aviões radiais e em linha e etc.
No terceiro sonho, como disse, a geometria da fuselagem e todos seus detalhes foram os focos da atenção. Cheguei a notar, após manobras limite com os ailerons, os seus balancins inferiores característicos dos caças Messerschimitt 109. E, até o quarto sonho, a fuselagem continuou a deter o meu interesse, sempre acompanhada com manobras mais radicais, nas quais eu, forçando melhores posições do corpo, tentei melhorar a visão que tinha dela, de dentro da cabine. A tomada de ar do lado esquerdo do nariz, logo acima das saídas do escapamento em linha, era do tipo simples, mais curta, diferente daquelas das versões trop, mais longas e com filtro frontal, usadas nos países tropicais dominados pela Alemanha durante aquela guerra. Mas, embora todo detalhe fosse bem vindo, não precisei deste para saber que não voava sobre um país tropical, já que no quarto sonho, eu só via outono, no verde abaixo das asas do meu 109. Predominava uma vegetação caducifólia, nome que me despertou muita curiosidade, nessas pesquisas pós-sonhos que eu fazia. Fiquei muito motivado em saber o porquê de essas plantas perderem as folhas nessa época do ano e as nossas não. Como elas sobrevivem sem folhas, durante esse período? Eu poderia ter perguntado à professora de ciências, mas, como já comentei, eu não queria violar aquele pacto de silêncio entre eu e Ele. Parecia que toda e qualquer informação passada, não pudesse ser dividida com ninguém, pois tinham a mim como alvo e eu, de algum modo, tínha que ser merecedor delas, indo a fundo aos demais detalhes envolvidos. De um modo divertido e romântico, eu entendia que os sonhos, empurrando informações preliminares, continuariam ocorrendo, desde que, através das minhas pesquisas, eu me inteirasse de suas minúcias. Mensagens sutis poderiam se esconder nessas minúcias e Ele, talvez, não perdoasse minha desatenção com elas.
No quinto sonho, voando paralelamente a uma pequena estrada cercada por muitas árvores, encontrei uma coluna de veículos militares e devolvi, com um movimento das asas, os acenos que soldados me fizeram de um dos caminhões. Vendo uma ponte alta adiante, ladeada por uma vegetação bem baixa à sua esquerda e direita, não resisti ao impulso de passar sob aqueles veículos assim que eles chegassem lá. Seria uma forma de saudá-los, pois eles também carregavam cruzes brancas nas laterais das portas. Pois assim eu o fiz: passei sob os largos arcos da ponte no exato momento em que a coluna de veículos trafegava sobre ela. Joguei o avião para a direita logo depois e, com um arrepio de satisfação no corpo, notei vários soldados me acenando, desta feita de praticamente todos os caminhões. Devolvi o aceno com as asas, joguei o manche para a esquerda, e segui o que parecia ser o meu caminho, pondo o sol de um bonito final de tarde bem à minha frente.
Desde garoto, discordo daquele ditado que questiona os atalhos para se chegar à felicidade, pois ninguém chegaria a ela com o uso deles. Essa tal felicidade só poderia ser atingida com sacrifício e empenho e não com truques vindos da astúcia ou do acaso. Essa idéia neurótica de relacionar felicidade com muito suor e trabalho, talvez seja útil aos que nos querem ver suando e trabalhando, mas está longe de também o ser àqueles que se utilizam dessa falsa regra, na ilusão de atingi-la. São truques do sistema para confundirmos trabalho e sacrifício com prazer e atingimento de metas. Feliz é aquele que descobre o seu dom e isso nada tem a ver com suor e trabalho. São, sim, necessários alguns riscos como, o de se testar limites e se aproximar de sua essência. Vicente de Carvalho disse que “a felicidade está onde a pomos, porém nunca a pomos onde nós estamos”. Isso é fato, quando a pomos onde nosso dom não está, já que é comum não estarmos seguros da existência dele. Mas ele está lá, em algum lugar. E é aí que entra certa dose de determinação para encontrá-lo. Não se trata de sacrifício, mas determinação. Devemos buscá-lo de modo sereno, mas constante. Não é uma atividade mecânica, mesmo que envolva certo esforço, mas um ato de atenção com as sutilezas do nosso caráter, que se manifestam no dia a dia. Às vezes, um lance de sorte nos aproxima de nosso dom e ficamos pasmos em não tê-lo percebido antes. Quando isso ocorre, estamos sendo agraciados com um atalho para a nossa felicidade. Sem os estímulos casuais daquele cão, por exemplo, que me fez galgar um muro de mais de três metros, eu não teria descoberto tão cedo a minha boa impulsão e não teria também nem metade da popularidade que usufrui no colegial, como armador do time de basquete. Isso tudo me ajudou muito nos relacionamentos, na conquista de novas amizades, nos meus primeiros namoros e no enriquecimento da minha auto-estima. Existem atalhos sim para a felicidade e, voltando aos meus sonhos, também eles me encurtaram caminhos, pescando valores subconscientes quase apagados nos meus estados de vigília. Confesso que esse modo de ser, que já era meu aos dez anos, trazia consigo um pouco de obsessão, levando-me a peneirar com cuidado tudo o que ocorria comigo, como se não só os sonhos, mas também a própria realidade, fosse me dar algumas pistas sobre tudo que eu carregava dentro de mim sem saber. Como uma bola de neve, que tende sempre a aumentar ao longo do tempo, o leque de interesses foi se abrindo e interligando, pois a exploração do assunto A, me levava ao B, que embutindo o C, trazia o D como conseqüência. As coisas passaram a se conectar sempre, de um modo ou de outro, mais cedo ou mais tarde, por pouco ou por muito. Eu fui crescendo de fato, pois cada novo ano trazia novos assuntos, interconexões, maneiras novas de se ver o velho, bem como, flagrá-lo no falso novo. Deixei de me impressionar facilmente com as aparências, mas gostava delas, como quem gosta de cortinas por querer saber o que elas escondem. Passei, inclusive, a me entreter com o lado dissimulado do mundo que, como as tais cortinas, abrem e fecham ao sabor das conveniências. Por isso mesmo, história era uma das minhas matérias preferidas, pois talvez não faça outra coisa senão desmascarar os reais motivos que as aparências disfarçam. Lembro-me de ter passado por uma fase de antiamericanismo muito forte, nessa época. Na minha adolescência, via os norte-americanos e sua cultura como uma espécie de show escandaloso de hipocrisia e oportunismo. Eu os entendia como vampiros, sugando o sangue de todo país que, por azar, detivesse alguma riqueza que fosse do seu interesse. Meu pai achava engraçado o fato de eu sentir pena dos mexicanos, cuja ingrata geografia os pôs ao lado dos vampiros. Nós, brasileiros, fomos ao menos beneficiados com uma maior distância. E hoje, quando escrevo sobre esse meu passado, sinto tanto orgulho em ver meu país cada vez mais independente das idiossincrasias do norte, que só me resta deixar isso bem claro a meus filhos: a enorme diferença entre o país que eles vivem e aquele que eu vivia na minha juventude.
No sexto sonho, lembro-me bem, tirei os dois pés dos pedais e os deixei livres para ficar tamborilando, com o lado interno das botas, aquela corcova que subia do piso da cabine e se projetava até quase a altura dos meus joelhos. Aquilo me lembrava o ônibus que eu pegava para ir à escola, pois aquela tampa côncava que cobria o motor ao lado do motorista guardava alguma semelhança com a do sonho, salvo algumas diferenças como, por exemplo, o fato dela ficar entre as minhas pernas e não cobrir um motor, mas o corpo principal do canhão que, acomodado entre os pedais, projetava seu longo cano por dentro do eixo da hélice. A saída dos projéteis se dava, portanto, bem no meio do nariz da aeronave. Suponho que isso minimizasse erros de tiro nos combates. Creio que apenas uma rajada dessa arma fosse suficiente para estragos enormes no inimigo. Por sorte, não vivi esse tipo de situação em nenhum dos dez sonhos que tive, muito pelo contrário.
Do sétimo até o nono, muitas manobras foram feitas, sempre entremeadas por vôos rasantes, seguidas por subidas longas, até quase a estolagem. Descidas vertiginosas vinham logo depois. Elas não me incomodavam, a não ser por um certo endurecimento dos comandos.
No décimo e último, tais manobras se repetiram, quando um baque de som metálico, vindo por trás, tornou tudo muito escuro. Estranhamente, acordei na manhã seguinte certo que aquilo era o fim. Meio inseguro e torcendo pelo contrário, dei adeus aos meus sonhos. Não fiquei me indagando sobre a possibilidade de ter sido atingido ou não. Também não fiquei, amargurado, ansiando pela volta deles. Se Deus quis falar comigo e o fez em dez vezes, não me restava outra opção, senão o respeito. Pensei até ser um pecado ficar me consumindo com a ausência, pois o que mais me preocupava era ver um sentido naquilo tudo. Eu não o vi de imediato, mas tinha certeza que, um dia, o veria. E assim foi, nos anos seguintes, por inúmeras vezes. Eu e esse sentido, ele e eu. Fiz da história e da biologia minhas matérias prediletas e vibrei de inquietação, quando as aulas de filosofia iniciaram no colegial. Sublimei nelas todo o vigor que o uso de óculos me impediu de dedicar a uma futura escola de pilotos de caça. Esse sentido passou também na frente dos meus olhos por várias vezes, sempre que tive de lidar com o diferente, qualquer que fosse o campo. Ideologias apaixonadas, religiões exacerbadas, excessos de regras e formalidades, pontos de vista irredutíveis e etc. Tudo eu peneirava, antes de julgar, evitando sempre fazê-lo de antemão. Afastava preconceitos, tal qual aqueles que não gostaria de ver nos outros que, por ventura viessem, a saber, dos meus sonhos com um avião nazista. Especializei-me em ir além dos rótulos, procurando enxergar virtudes onde elas existiam, mesmo que camufladas entre alguns defeitos. Nunca deixei de ser crítico, pois ingenuidade seria incompatível com a minha paixão pela leitura e os referidos bastidores por detrás das cortinas. Até nas horas vagas esse sentido passa por meus olhos, ocupando meu tempo na montagem de maquetes da aviação. Há algumas décadas, esse hobby me trouxe a grata surpresa de não estar sozinho. E os amigos vieram, uma avalanche deles. Cada um debulhando seu dia a dia a seu modo, com toda a responsabilidade que a rotina profissional exige, mas ao montarmos nossos modelos, voamos juntos e em formação. Não preciso de muito empenho, quando num céu perdido, na imensidão potencial da nossa amizade, eu volte a me ver no meu Bf-109, tal qual nos sonhos, sendo sorrateiramente ladeado, na esquerda e direita, por dois possantes F-4U Corsair americanos, com seus roncos radiais, que quase como música, seguem a batuta elegante e destra que só o Marcílio e o Marcos poderiam lhes emprestar. Falamo-nos pelo rádio, enquanto um bólido de nariz longo veio por cima e, girando uma vez em torno de si mesmo, nos permitiu perceber suas credenciais francesas. Era o Gaúcho, com seu Dewoitine D-520, juntando-se aos seus. Mais alguns minutos e veio o Lucas, caçula do grupo, com seu glorioso Yakovlev-9U, defendendo as cores russas. Tudo parecia ficar melhor, a cada novo piscar de olhos. E assim foi, quando Laércio se aproximou pela direita, ele e aquela coisa linda de dois motores e cauda bifurcada, um P-38 Ligthning novo em folha, somando mais pontos aos americanos. Mas o Paulo e o Borges, vindo logo após, trouxeram seus ingleses, com toda a discrição que os caracteriza, suaves e solenes, mas em momento algum não notados, pois é impossível não se render à beleza das linhas de um Spitfire, seja o Mk-22, com sua hélice de cinco pás, seja o seu avô, Mk I, com as clássicas três. Bicos projetados e elegantes silhuetas. E que silhueta, meu Deus!. Mal nos detínhamos em suas linhas, quando um bólido veio até nós por baixo, com sua inconfundível velocidade de ascensão. O Zero A6M5 chegou e com ele o Tsuka. Piloto e avião, avião e piloto. E a terra do sol nascente se fez representar. Marcelino trouxe a Itália, quando se juntou a nós com seu querido Folgore C-202, mas não veio sozinho, pois André, com seu Fiat C-42, o acompanhava bem de perto. Difícil saber qual dos dois mais nos entreteve. Camuflagens incríveis, formas aerodinâmicas, belos, enfim. Muito belos, por fim. Algum tempo se passou. Esperamos os demais. Sabíamos que viriam. Lucas, impaciente, traduziu sua juventude em algumas manobras radicais fartamente aplaudidas por cada um de nós, que o assistimos de camarote. O dia estava muito bonito, sol e céu de brigadeiro. Mesmo assim, Ricardo veio com o seu caça noturno, um P-61 Black Window, tão negro quanto o lado escuro da lua e reluzente como a simpatia do condutor. Do solo e com binóculos, Renata observava orgulhosa o maridão. Falamo-nos mais pelo rádio. Confabulamos sobre detalhes nas formações das nuvens e trocamos piadas, muitas piadas. “Vocês sabem por que o P-40 era chamado de P-400?” – perguntou o Tsuka. “Porque atrás de cada um deles sempre havia um Zero”. E disse isso satisfeito, morrendo de rir. Ricardo foi, com vagar e jeito, emparelhando o Laércio na formação e demos espaço para que ele o fizesse. Dois bimotores, lado a lado, pareceram lhe fazer mais sentido. E a gloriosa força aérea norte-americana aumentava sua representação que, ainda se arrumando, mais espaço aqui e outro acolá, recomeçaram o processo para acolher mais um, esperado e bem vindo. Era o Márcio e o seu robusto Thunderbolt, um P-47 D, costa baixa, tanque voador, forte como poucos e difícil de abater. Quase de imediato, como quem conta até dez, alguns alemães se aproximaram, para abrilhantar a festa. Cláudio trouxe um D-9, o Focke Wulf 190 e Jorge, como ele mesmo disse pelo rádio, veio empurrado pelos anjos, com seu Dornier-335. Um com o motor em linha, inimigo feroz e eficiente dos aliados, e o outro com dois motores, frente e cauda. Quem seria capaz de alcançar algo que, com tanto vigor e potência, é puxado e empurrado ao mesmo tempo? Esses alemães eram mesmo incríveis. Mais prazer, mais piadas, mais divagações e o rádio não parava de falar. “O próximo churrasco vai ser na casa de quem?”- o Marcos perguntou. “Sei lá”.– respondeu o Márcio. “A gente tira no sorteio”. Três silhuetas se aproximavam pela frente e alguns de nós as notamos. Em si, já era uma esquadrilha, e nós, com a nossa, já fomos pensando em abrir mais espaço. Eles passaram bem abaixo de nossas barrigas. Eram três Mustangs D, os P-51, cadilaques do ar. Não podiam faltar, como também seus pilotos, Ney, Sinésio e Glauco. É isso mesmo, grandes caras merecem grandes aviões. Esbanjaram beleza e poder, quando fizeram a volta por trás e se juntaram a nós. Mais norte-americanos para o grupo, com quase todos seus belos aviões representados. Mas havia algo estranho no ar, uma espécie de silêncio contido que, entre risos abafados e segredos em voz baixa, eu ouvia pelo rádio. “O que vocês estão aprontando, pessoal?” – indaguei a todos. “Olha lá, sem loucuras, nem manobras bruscas demais”. – completei. “Fica tranqüilo, seu neurótico”. -disse o Ney. “É isso mesmo”.– interveio o Sinésio. “Fica tranqüilo. Não foi você que bolou essa festa toda? Pois é, preparamos uma surpresa, pois além de virmos em peso, fecharemos nosso encontro com chave de ouro. Aguarde e verá”. “Mas aguarde quanto? Muito tempo?” –devolvi ansioso. “Calma, ele já está chegando. É rápido como uma bala. E não é o Super-Homem”.- disse o Glauco entre risadas e se divertindo à beça. E ele veio, o rei dos caças. Sua primeira passagem foi incrível, extremamente rápida e retilínea, curvando à direita, logo após, para vir ter conosco por baixo, nas seis horas do ponteiro. Lentamente subiu à nossa frente, na linha do horizonte, assumindo seu lugar de honra e de direito, liderando o grupo. Era o Messerschimitt Me-262 diurno, sem as galhadas de radares dos embates à noite, com suas turbinas alares e farto armamento frontal, fatores que quase mudaram o destino da guerra, protagonizando não só inúmeras quedas de aviões aliados, como também dos queixos de quem tivesse o desprazer de combatê-los. O Lauro o trouxe e sou-lhe imensamente grato por isso.
A formação permaneceu junta durante algumas horas e depois se desfez, com todo o apetite desse nosso romantismo já satisfeito. Não me preocupei nenhum pouco com a diluição do grupo, pois sempre que possível, voltamos a nos reunir, não só na imaginação, quando montamos meticulosamente aeronaves, como de fato, em nossas constantes reuniões e conversas. Aos olhos do leigo, esses kits de montagem sempre parecerão brinquedos. Afinal, como dizem as más línguas, do menino ao homem, só o preço deles é que muda. Quanto a mim, é quase impossível vê-los assim: de modo leigo. Ocorre que eu sempre volto ao Eliot nessas questões. E quando abro a caixa de um caça qualquer para montar, lembro que aquilo é cópia de algo verdadeiro. E não me refiro apenas ao avião em si, mas também às histórias de vida dos pilotos que os conduziram e dos amigos que esse hobby me trouxe.
Um brinde a quem mais queira se juntar a nós numa nova formação, quaisquer que sejam as aeronaves escolhidas, os locais das exposições programadas ou a casa sorteada para o próximo churrasco. E que, por muito ou pouco, um kit, vários, ou nenhum, muita cola ou apenas a suficiente, permaneçamos juntos, voando sobre nossas diferenças.