Tchekhov
Anton herdou do pai a paixão por tudo que dissesse respeito à Rússia, especialmente a literatura. Nasceu num 17 de janeiro, capricórnio, e já quase completava 44 anos, dos quais cerca de trinta foram de pura dedicação à história, geografia, cultura e política da ex União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Também do pai, via herança e ainda bem jovem, recebeu sua atual biblioteca com inúmeras obras daquele povo em qualquer que fosse a área de sua arte e conhecimento. Porém, a explicação para todo esse arrebatamento, todo esse desmedido amor, era uma incógnita, já que o pai não tinha como incluir a educação do filho na pauta das incontáveis reuniões que tinha em sua carreira diplomática. O gosto paterno pela cultura russa apenas lhe trouxe o nome, Anton, e a respeitável e invejada biblioteca. A partir daí, como um gatilho, tudo foi se dando. O interesse, aos 10 anos, pela linguagem de Gorbatchov, Tchernenko, Stalin e Kruchev, bem como detalhes sobre entrelinhas da personalidade de cada um; o amor à poesia e prosa russa, aos 12 anos, que o fez entrar em transe, em seu quarto fechado, ao ler “Crime e Castigo” de Dostoievisky, levando a mãe, assustada, a chamar um médico. Aos 18 , arrebatou-se por Ana, sua esposa, que passou ao seu lado, num parque, com uma boina na cabeça e conduzindo um cachorrinho. Tudo que carregasse a aura russa era de algum modo especial a Anton e nem mesmo ele sabia precisar o por quê. Chegou a financiar um de seus amigos, eu, no caso, na montagem de kits em escala dos principais aviões russos, desde a 2a. Guerra até os dias de hoje. Isso foi a mim surpreendente, pois ele nunca manifestou, como eu, qualquer interesse por aviação. Mas eram russos e isso bastava. Soube depois, que as aeronaves iriam ocupar um quarto especial, no porão de seu sobrado, que, integradas a tantos outros objetos, convergiam para um único tema: a Rússia e tudo o que dela viesse. Confesso que fiz um bom trabalho em seus Lavochikin, Yakolev, Polikarpov, Iliushin, Tupolev, Migs e Suckois que hoje ocupam um belíssimo armário com portas de vidro, especialmente encomendado para esse fim.
Ana acabou por se tornar sua secretária, pois sempre estando em casa, organizava todos os acessos, via telefone ou e-mail, que faziam ao marido. Eram comuns convites para assessoria em assuntos soviéticos, bem como palestras e coisas afins. Caso Anton deixasse seu emprego no instituto, como médico sanitarista, poderia facilmente sustentar a si e aos seus com os recursos vindos da meticulosa agenda da esposa. Mas tanto ele como ela blindavam esses valores contra eventuais devaneios do consumo, preferindo guardá-los para o futuro das verdadeiras riquezas que possuíam: Olga e Sasha, seus filhos.
Anton nunca foi afeito à religião, era ateu convicto. Carregava, no entanto, uma certa dose de misticismo. Nada exagerado que pudesse por a lógica num segundo plano, mas era místico, fato que ele mesmo reconhecia. Gostava de ver sinais nas coincidências e, entre causa, efeito e destino, mesclava ambos de tal modo que, respectivamente, os primeiros lhe trouxessem a razão, sempre temperada com a poesia do último. Assim, um dia, já há vários anos, um senhor com vocação espírita lhe pôs na cabeça ser ele uma reencarnação de Tchekhov, o escritor russo. No início, deu de ombros, não levando o comentário a sério, pois, gostando de tudo que russo fosse e se chamando Anton, provavelmente iria se cansar de ouvir esse tipo de coisa. Mas não podia negar que o fato de ser médico, ter o pulmão fragilizado e nascer num 17 de janeiro, reforçava os comentários desse senhor. Sendo assim, brincando com a idéia que no fundo o lisonjeava, disse a si mesmo que, após completar seus 44 anos no janeiro que se aproximava, caso morresse no 1º. de julho seguinte, o velho estaria certo. Isso, claro, se sua vida fosse uma repetição da do autor. E no pouco que Anton conhecia de Allan Kardec, reencarnações tinham conotação progressiva e não meramente repetitiva.
“O pensamento é o alfaiate do destino” Anton gostava dessa frase. “Sorte é a soma de competência com oportunidade” - essa também era uma de suas prediletas. Outras tantas constavam num manuscrito sobre a escrivaninha daquele quarto temático do porão. Ele as anotava sempre que alguma nova aparecia e, quase todas elas, tinham em comum conjecturas sobre o vir a ser, ao menos em parte, já estar programado em nossas vidas, ou ser fruto direto das circunstâncias casuais que nos moldam. Como médico, sempre tendeu para o lado da programação parcial, antes mesmo do advento da moderna engenharia genética, que parece vir confirmando algumas dessas suas tendências. A genética diz o que, potencialmente, podemos ser, cabendo ao meio ambiente estimular ou não os genes que nos pré-adaptam a uma ou outra forma desse vir a ser. Enquanto isso, a seleção natural da conta de, com o tempo, favorecer o vir a ser mais adequado àquele ambiente. E não resta dúvida que ser um segundo Tchekhov, não conflitava o ateísmo de Anton, pelo simples fato de temperar com carinho seu modo russo de ser. Conforme disse, a razão lhe parecia fazer mais sentido, se carregasse um leve toque de misticismo, traduzido nos sinais que as coincidências lhe traziam. “O pensador não subjugava o homem sensível, pois sabia estabelecer diferenças, separar a imaginação do fanatismo”, como cita um famoso escritor. Mesmo porque, nas questões da mente, Anton se fiava em Vygotsky, psicólogo russo, que nunca se excedeu nem em determinismos históricos, nem em livres-arbítrios, já que cada um de nós seria uma combinação única desses valores, coerentes, condizentes e até mesmo coniventes com nossas necessidades sociais e íntimas. Segundo o psicólogo, nossas vidas se dão num “palco de negociações” com tais valores.
Ana amava muito o marido. Absorvia, com o tempo, esses seus interesses. Porém, nem tudo da Rússia lhe chamava a atenção. Detinhasse mais e com prazer na política daquele país, desde os primórdios da revolução de 1917 até os dias de hoje. Sempre teve uma fascinação especial pela mulher russa. Camponesa, militante, velha ou moça, não importa, ela lia, buscava e pesquisava. Como Anton, nunca se viu como a reencarnação de uma delas e tinha predileção pelas comuns como, por exemplo: como seria a namorada de Vassili, franco-atirador da 2ª. Guerra que tanto trabalho deu aos alemães? Creio que se punha na pele dessas mulheres, não para avaliá-las, mas sim para se avaliar, pois isso ela sabe fazer muito bem, trocar de pele com os outros para sentir valores que não sejam seus. Exploravam esse seu dom, consultando-a quase sempre na solução de conflitos, tanto dentro da família, como na vizinhança.
O que mais eu poderia dizer sobre Ana? Ora, muitas coisas, mas soariam redundantes, coisas de um homem apaixonado, já que me casei com ela. Direi apenas que ela tem muita humanidade, além de sangue, correndo nas veias. Creio que isso já a defina de um modo justo, dispensando maiores comentários sobre suas outras características que, a meu ver, são comuns e óbvias às pessoas que carregam muita humanidade.
Após dois anos da morte de Anton, que, tal qual Tchekhov, se deu justamente no lo. de julho seguinte ao seu quadragésimo quarto aniversário, resolvemos nos casar. Às vezes me pego pensando não ter ela se casado comigo apenas para manter a memória de Anton por mais tempo. Isso porque Cláudio, Theo, Pedro e eu sempre fomos os que ele mais procurava. Suas reuniões e passeios costumavam nos incluir. Vez por outra, davam um jeito de convidar uma prima, irmã ou tia de alguém, com a intenção de eu não sobrar nesses encontros, pois sempre fui o único misantropo, eremita e solteiro do grupo. Talvez ela tenha mesmo me escolhido para lembrar daquele que a escolheu naquela praça, quando passeava com seu cachorro. Talvez também tenha passado a usar meu ombro para chorar ou meus ouvidos para se lamentar, por eu ter admiração por Tostoi ou achar, ainda hoje, que sem a Rússia e sua longa antipatia com o Ocidente, o mundo seria um grande, monótono e imperial Estados Unidos da América. Talvez ela tenha se acostumado a ir em minha casa em busca de um consolo mais consistente, por ter gostado da minha coleção quase completa de aviões russos. Talvez não tivesse ido lá, na noite em que lhe pedi em casamento, se eu não tivesse antes, por telefone, feito comentários sobre o Omar Sharif em “Dr. Jivago”. Talvez ela não tivesse passado a se sentir tão à vontade comigo, se eu não a acompanhasse quase sempre em seus assuntos russos. Talvez ela não me desse aquele primeiro beijo, se eu não insistisse em fazê-la ver um pouco de Anton em mim. Talvez, enfim, todo esse meu determinismo em conquistá-la de nada valesse, não fosse meu amor por ela lembrá-la o dele. Talvez, talvez, talvez...tivesse, tivesse, tivesse......Que sejam. Certo mesmo há apenas o fato da morte de Anton ter tornado viável minha vida com Ana.
Durante algum tempo, tanto ela como eu mantivemos, na sala de casa, um baú com muitas fotos de um passado recente. Até certo ponto, elas invocavam alguns desses “talvez”. Hoje ele se encontra esquecido, num canto da garagem, junto com louças antigas, abajures quebrados e etc. Cansamos dos “talvez”, mas vale dizer que um deles ela sempre evitou, pois a deixava muito irritada: o da possibilidade de Anton ser uma reencarnação de seja lá quem fosse. Para ela, histórias de vidas passadas e religiões com seus deuses são farinha do mesmo saco: o dos devaneios. Nesse aspecto e em muitos outros, sempre foi prática e objetiva. Considera boa parte do impossível algo que temporariamente transcende nossos limites, para se tornar viável em uma ou duas gerações à frente. E, quanto ao impossível de fato, ela dá de ombros, pois o que temos já deveria ser o bastante para mudar o que é preciso. “Buscar forças fora de si, como deuses, por exemplo, já foi por demais capitalizado pelas elites”, segundo ela, “na resignação e anestesia coletiva dos pobres”. “Por que os evangélicos estão se dando bem?” – ela às vezes me pergunta. “Pastores não são apenas incentivados a rezar, mas também a comprar e conquistar sem culpa, atropelando resistências, impondo-se e fazendo da religião uma hipócrita, mas eficiente arma de ascensão social. Não são missas, são cultos e nós já cansamos de ver esse filme, não é?" – diz ela, olhando para mim. " Sabemos como termina.”
Conversamos muito a respeito dos três pilares: liberdade, igualdade e fraternidade. Usamos suas referências sem exageros anarquistas, buscando o meio termo, pois o termo inteiro de um resulta sempre no termo do outro menos um.
Olga e Sasha estão bem, vão vingar adultos dignos de confiança. Não temem os deuses, apenas flertam com eles de vez em quando, curiosos que são. Também gostam de coisas russas, mas preferem as brasileiras, “pois são mais ricas e variadas”, costumam dizer.
Eu e Ana fizemos um terceiro herdeiro, José. Dos nomes, talvez o mais brasileiro possível. Nasceu no ano passado com parto normal. “Vocês não vão batizá-lo? José é um nome bíblico”.– disse minha tia. Ana ia responder, mas eu fui mais rápido:
- Desculpe, tia, quero que minha mulher veja uma coisa. Disse puxando-a pelo braço até o nosso quarto.
José estava no berço, ao lado de nossa cama. Ficamos olhando ele dormir.
- Tudo bem? Perguntei.
- Bobão, eu não ia ser grossa com sua tia. Tenho pena dela.
Chamamos Olga e Sasha e nos fechamos no quarto com eles por cerca de meia hora. Inventamos uma brincadeira nova: observar o José, enquanto dormia. Bolamos maneiras de lhe garantir uma vida que valesse à pena. Em momento algum, religiões foram citadas ou deuses mencionados. Não por orgulho, pouco caso ou desdém, mas por hábito ou, melhor dizendo, pela falta dele. Deuses não nos preocupam, pois a forma que temos de crer, difere da convencional. Cremos em deuses que devem se orgulhar de suas obras, quando elas se mostram auto-suficientes.