ALFACE – UM DIA DE LUTO

Da série de contos ALFACE

Sexta feira era um dia que aceitava eventuais ausências de Alface à esquina dos contos, o mesmo valendo para as segundas feiras, tudo pela simples razão de que eram, respectivamente o antes e o depois, dos finais de semana – das festas – e da programação sempre intensa que os sábados e domingos tradicionalmente reservavam para os jovens.

A ausência de Alface numa terça feira, contudo , chamou a atenção de todos os membros da confraria que mostravam-se abismados com a “falta” do principal parceiro e líder da “Esquina” . Todos se indagavam sobre os motivos que levariam Alface a não aparecer , afinal problema de saúde não deveria ser, visto que no domingo todos haviam participado de uma intensa atividade esportiva , no torneio de Futebol Sete promovido pela União de Estudantes Secundaristas .

Isso fez com que a presença de confrades fosse ainda maior na quarta feira pela manhã , pois que a curiosidade sempre foi uma das mais intrigantes marcas do ser humano desde tenras idades , mesmo assim Alface não chegou na “primeira hora” da manhã, como sempre ocorria, levando todos a elevar os níveis de preocupação.

Mas no meio da manhã, quando se ouviu o som da campainha para o recreio , lá estava o Alface sentado na mureta da Esquina dos Contos, postado à espera dos parceiros. O primeiro a chegar foi Beto , que logo notou uma pequena faixa preta na manga direita da camisa de Alface – um claro sinal de luto familiar - que naquela época era registrado nas vestes dos jovens .

Nunca se esperou que aquela quarta feira fosse representar tanto na história da vida de cada um dos jovens que integravam aquele grupo , porque foi muito triste ouvir o relato de Alface – mais do que isso – não foi um simples relato, foi uma verdadeira confissão de dores internas , seguidas de lições de vida que seriam inexoravelmente levadas para sempre na bagagem daquelas consciências em formação.

Havia falecido um tio de Alface, segundo ele mesmo contou, vítima de uma doença degenerativa do fígado desenvolvida pelo excessivo consumo de bebidas alcoólicas. “Mas não pensem, disse Alface que só a morte de meu tio é que abala minha vida neste momento” – Não ! – “Meu pai também bebe em excesso, só que diferentemente do meu tio que morreu perambulando pelos bares, ele bebe discretamente em casa sem perturbar ninguém com sua embriaguês. Minha mãe , quando se enfurece com papai , diz que eles vem de uma “família de bêbados”.

Já ouvi diversos murmúrios de vizinhos dizendo que isso era um “mal de família” e que os filhos também deveriam “sair gambás”, porque estava provado “cientificamente” que era “hereditário” - Pelo viés da maledicência ululante, eu – o parceiro Alface que só bebe alguns goles nas festas - já estaria condenado a um futuro inevitável: - Alface o bêbado !

Havia angústia misturada à melancolia nas palavras de Alface - “ O certo , meus amigos, é que os adultos não entendem que suas escolhas constituem um fardo pesado para seus filhos . Sim, dizem que eu sou o mais rebelde da turma – que não sou um exemplo a ser seguido – dizem que represento a figura clássica do jovem problemático . Ah , se soubessem tudo o quanto carrego, quem sabe me entenderiam melhor ...”

Naquele dia Alface brindou-nos com um dos capítulos mais tristes de nossas vidas, porque passamos a entender o quanto as atitudes dos adultos podem afetar aos jovens. Entendemos que , acima de tudo , os erros e faltas cometidas pela geração que antecede , de uma forma ou de outra acabam plasmadas em algum traço da personalidade da geração que se renova. Positiva ou negativamente, quer gerando repetição dos mesmos problemas, quer produzindo seqüelas psicológicas de difícil superação.

O dia de luto, contudo, passou – como passam todas as tristezas da vida – e logo depois já voltou com plena força e vigor a mesma figura desafiadora e irreverente do Alface que todos nós conhecíamos , e gritando: - O que temos para hoje parceiros ??