Causa mortis

Felisberto da Cunha, tinha a alcunha de seu Cunha. Cidadão pacato, de hábitos simplórios, olhar esperançoso e voltado para a natureza. Seu Cunha nunca tinha visto TV, nem tão pouco cinema. Ouvira falar de Ronaldinho uma vez: quando o filho de seu compadre Ronaldo nasceu e puseram o nome da criança de Ronaldo. Por ser o caçula, ficou apelidado de Ronaldinho.

Um dia seu Cunha foi ao médico na cidade de Teresina. Saíra pela primeira vez do interior onde vivia com a mulher e um cachorro num pequeno sitio na Gameleira. Ali ele criava galinhas, patos, muitos pássaros, porcos e plantava mandioca e feijão. A vista da cidade grande lhe fez sentir enjoos e medos. Muitos carros, motos, pessoas, bicicletas e quase nenhum animal. Seu Cunha estava impressionado com o movimento frenético no centro da cidade. Olhava tudo atentamente, fixava os olhos em cada néon que via, não piscava ao ver uma ambulância, sorria sempre e cumprimentava a todos como se estivesse andando nas ruelas e becos de sua cidadezinha. Seu Cunha estava ali. Como? Ah! Seu filho mais velho que morava em São Paulo viera lhe fazer uma visita e descobriu que o pai estava doente. Segundo o diagnóstico preliminar do doutor Ambrósio, médico da cidadezinha do interior, seu Cunha tinha um problema muito sério no coração.

_ Provavelmente causado pelo cigarro. Diagnosticou o velho doutor.

_ Viu pai, o senhor precisa abandonar o vício.

Escutando atentamente, seu Cunha apenas riu como se estivesse entendo tudo. E quanto ao vício do cigarro, esse era apenas como acontece com todo sertanejo: acende um e o coloca no canto da boca. É desses feitos com papel, palha de milho e fumo de rolo, bruto. O dia inteiro o cigarro fica preso no canto da boca e de vez em quando é preciso reacender para dar um baforada. Um vício quase imperceptível.

Chegaram ao consultório do Doutor Alfredo Régis Vanacuver. O médico era especialista em coração, o mais renomado no Piauí. Seu consultório era sempre cheio. Gente elegante, bem trajada que sempre chegava de carro. A mais fina nata da sociedade teresinense. Seu Cunha também estava bem vestido. Um terno azul marinho, camisa branca de listras azuis, um sapato preto combinando com o cinto, cabelos bem penteados. Estava muito elegante. Sentado ali na sala de espera ao lado do filho todo nervoso, seu Cunha ouviu a voz doce da secretária anunciar:

_ Felisberto da Cunha.

_ Vem pai, somos nós.

Com o mesmo sorriso seu Cunha adentrou no consultório. O Dr. Alfredo tinha cara sisuda, cabelos grisalhos e levava um cachimbo (era ex-fumante e não perdera o vício físico do cachimbo) à boca a cada pergunta que fazia ao paciente ou ao seu acompanhante.

_ Idade.

_ 65 anos doutor. - Sempre o filho que respondia.

_ Algum problema mais grave ultimamente? Dor, febre, tontura, reumatismo?

_ É, ele se queixa de uma dor no peito, às vezes fala que a respiração lhe falta.

_ Já teve algum infarto, algum desmaio?

_ Não senhor. Meu pai sempre foi muito forte. Sempre trabalhou muito e nunca se viu com uma doença grave. Só agora que está meio cansado e fala dessa dor. É a idade né doutor.

Bem que poderia ser mesmo, já que o pobre homem lidava o dia inteiro com a roça e as criações. Uma dorzinha lombar não é de todo nenhuma novidade ou coisa grave. Mas...

_ Bem vamos ver. Seu Cunha, sente-se ali e tire a camisa.

_ Seu Cunha obedeceu tranquilamente. Sentou-se na cama, retirou o terno, a camisa e esperou o médico com a paciência de um homem que esperou a vida inteira por alguma coisa que não sabia o que era. E sempre com o mesmo sorriso.

_ Diga "trinta e três".

Neste instante o filho de seu Cunha o interrompeu:

_ Meu pai é analfabeto doutor.

_ Tudo bem. Então seu Cunha apenas repita comigo. "Trinta e três."

_ "Cumo" é.

_ Repita: "Trinta e três."

_ Trinta e três.

_ Isso. De novo.

_ Trinta e três.

_ Agora respire fundo e solte bem devagar.

Seu Cunha fazia exatamente como o médico mandava. Respirava e soltava, respirava e soltava. Enquanto o médico concluía o exame o filho de seu Cunha apenas observava. Nervoso, atento, roendo as unhas.

_ É grave doutor?

_ Meu rapaz, seu pai não viverá muito. Pelo que eu pude observar o coração dele já não tem mais forças para bombear o sangue. As veias estão entupidas e não adianta cirurgias, ele pode não resistir devido à idade.

_ Mas como pode isso doutor? Meu pai nunca foi de extravagâncias, nunca foi de fazer estrepolias com a saúde? O senhor tem certeza doutor?

_ Meu filho eu sou um médico de renome, eu nunca erro. Pode crer. Seu pai está no fim.

Seu Cunha ouvia atento. O olhar confiante no médico e curioso nos quadros e diplomas. "Tudo tão bonito, tão zeloso." Pensou.

Saíram dali e pararam numa lanchonete. Seu Cunha comeu um sanduíche e tomou suco, enquanto seu filho o olhava com pena. Começou a chorar em silêncio, buscando conter as lágrimas para não alarmar o pobre velho, que na sua opinião jazia moribundo entre a vida e a morte. Terminaram, pagaram a conta e rumaram para casa. Passaram em frente a uma funerária e Aderbal (o filho de seu Cunha) resolveu entrar. Seu Cunha não entendeu, mas seguiu o filho.

_ Bom dia. Qual o preço dos caixões?

_ Para quem é meu filho?

_ Para o meu pai.

_ Qual o tamanho dele você sabe?

_ Mais ou menos um metro e sessenta.

_ Ele é forte, quero dizer, gordo.

_ Não senhor. Bem magrinho, coitado.

_ Bem nós temos este aqui. Madeira de lei, com tampo de vidro e seis alças. Uma beleza e não custa muito.

_ Ficaria em quanto este?

_ 350 reais.

_ O senhor manda deixar em casa?

_ Claro! Nós vamos ao hospital, removemos o corpo para cá, damos banho, vestimos e preparamos o cadáver no caixão e levamos para o velório no lugar que o senhor indicar. Diga-me, em qual hospital está o seu pai?

_ Não. Ele ainda não morreu.

_ Como?

_ É. Ele ainda está vivo. É aquele senhor ali. Fomos ao médico hoje e o doutor falou que ele tem poucos dias de vida. Então estou providenciando tudo.

O Vendedor ficou espantado. Como poderia uma pessoa antecipar o enterro de alguém, sendo que esse alguém estava ali em pé, olhando os caixões, os desenhos nas paredes, a rua e parecia gozar de perfeita saúde?

_ Meu rapaz, onde você levou seu pai? Em qual médico?

_ Na clínica do doutor Alfredo Régis Vanacuver.

O homem soltou uma gargalhada e batendo no ombro de Aderbal disse com ar de ironia.

_ Não vou fazer esta venda a você. Há vinte anos, eu era dono de um sitio e lá criava galinhas, vendia ovos e cachaça. Tinha uma vidinha tranquila, sossegada ao lado de minha esposa e dos meus dois filhos, que Deus os guarde. É que morreram de cirrose. Fui a uma consulta com ele. Sabe o que ele me disse?

_ Não senhor.

_ Ele falou com aquela voz grossa e pausada de dono da verdade. "Seu Clemente. O senhor infelizmente não durará muito. Está com um entupimento nas veias do coração e este vai parar de bater logo, logo." A partir daí minha vida desandou, nunca mais tive sorte. Comecei a beber, induzi meus filhos a beberem, os dois morreram, minha mulher enlouqueceu e morreu afogada. Perambulei uns dez anos sem rumo, bebendo e vivendo como um mendigo. Também um dia quis comprar o meu caixão. Guardei-o na minha casa e esperei a morte na cachaça. Minha vida foi se despedaçando, minha família desaparecendo. Hoje me recuperei, tive alguém para me ajudar e montei este negócio de funerária. Depois que me ergui voltei a minha antiga casa, já quase em ruínas, peguei o velho caixão e o trouxe para cá, botei-o à venda aqui. Até hoje nunca fiz um negócio sequer. Todos os que me procuram vêm da clínica daquele picareta.

_ E por que o senhor não desistiu de vender caixões?

_ Porque eu sou teimoso. Um dia vou vender um caixão e aquele miserável será o primeiro a comprar para usar.

Valber Diniz

VALBER DINIZ
Enviado por VALBER DINIZ em 30/06/2010
Reeditado em 12/05/2011
Código do texto: T2349585
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