Por todo o dinheiro do mundo

CAPÍTULO I

“Deixo a vida como quem deixa uma noitada”. Essas palavras, escritas num papel de embrulho, colocado dobrado dentro do bolso do paletó de Benevides Siqueira foi tudo que a polícia encontrou ao chegar em sua casa, na quadra 11. Os vizinhos estranharam a decisão de Benevides de enforcar-se com uma corda de nylon naquela manhã de sábado. Como de costume Benevides saía de casa às seis da manhã para ir à feira comprar os legumes e a mistura do almoço. Morava sozinho. Sem mulher e filhos. Apenas um cachorro chamado Bedelo (ninguém sabe o porquê desse nome) lhe fazia companhia.

CAPITULO II

Por volta das 9 horas, Benevides entrou em casa. Deixou as sacolas sobre a mesa e foi tomar um banho. Esse hábito de todo sábado ir à feira no mesmo horário, sempre arrumado e perfumado pode esconder as causas de tão misteriosa morte. Benevides não era de falar muito, não era de confusão. Sempre se apresentava na sua discreta vidinha solitária, e isso há nove longos anos.

Os vizinhos costumavam dizer que o delicioso perfume de suas refeições era uma marca na rua. Mesmo não tendo nenhum contato com ele, o senhor de costumes arredios, todos diziam que sua comida era divina, claro, a julgar pelo cheiro. O odor era infalível às narinas mais desatentas. Bedelo, cão vira-latas que acompanha Benevides, talvez seja a única testemunha, infelizmente muda, do trágico desfecho e também da deliciosa refeição.

Contam as más línguas que ele talvez fosse homossexual. Há quem diga que eram dívidas. Esta, tese última, é difícil de se comprovar. Afinal nunca se soube de um corte de água, luz, telefone ou qualquer outra coisa em sua residência. A polícia descarta essa hipótese mas acredita que exista algo que envolva drogas, por exemplo. Não que ele usasse, mas que fosse um traficante e por razão de consciência tenha se matado como que para se livrar de uma culpa. Mesmo assim, são apenas hipóteses. Nada foi encontrado que comprove tais deduções.

Seja como for, Benevides estava morto. Estirado no chão do quarto, coberto com um pano branco com a logomarca da FHDF. O que teria provocado aquela morte? Quais razões? Quem era aquele estranho senhor de 50 anos, cabelos grisalhos, pele clara, estatura mediana e que morava numa casa confortável da quadra 11?

CAPITULO III

No dia em que comprou a casa, à época ainda um barraco de madeira, Benevides estacionou um caminhão Mercedes 1113 e descarregou toda a sua mobília. Era uma cama de casal, uma geladeira cônsul 280l, uma TV telefunken (mais antiga que o rascunho da Bíblia), um rádio gravador Motorola, uma estante de duas prateleiras, meia dúzia de panelas e um fogão de duas bocas. Esse patrimônio calculável era a sua riqueza constituída com a sua aposentadoria de inúmeras horas de trabalho na limpeza das ruas de Brasília. Era gari do SLU.

Ao longo dos anos sua vida foi se modificando. Meses e meses de construção e sua casa, o antigo barraco, virou uma espécie de mansão. Era um sobrado com varanda na frente, dois quartos de hóspedes em cima. Sala para TV, escritório (diziam que ele cultivava o gosto pela leitura e tinha adquirido muitos livros), tinha ainda um lugar para receber visitas e dois banheiros. Na parte de baixo, ele fez a sala de estar, um quarto com banheiro, mais um quarto simples, um banheiro social, uma copa grande com dispensa e uma garagem com lugar para dois carros. Ele tinha os dois. Um importado com nome esquisito, Hyunday, e o outro um Corsa motor 1000.

Usava sempre o modelo mais modesto. Era econômico e chamava menos a atenção. Não era esbanjador, nunca dera uma festa e a visita mais frequente era de uma mulher que aparentava entre 35 a 40 anos. Era alta (mais do que ele), loira e sempre bem vestida. Sempre chegava na rua dirigindo um carrão (talvez da mesma marca e modelo do seu). Nunca dava bom dia, boa tarde e nem fazia um único gesto amistoso. Entrava, ficava por horas e depois saía, sempre com a mesma postura.

Contam as más línguas que era amante dele. Outros especulam que não tinha nenhum vínculo amoroso e que se tratava de uma irmã mais nova. Pode ser. Mas quem garante?

Uma vez por mês aparecia um rapaz. Era alto, forte e sempre vinha com uma bolsa, dessas de praticante de esportes. Chegava de moto e nunca tirava o capacete. Do jeito que entrava, saía. Os vizinhos, intrigados, curiosos e cheios de malícia diziam que era um lover boy. Quem também garante?

CAPITULO IV

Essas visitas aconteciam sempre nas tardes de sábado. O moço chegava por volta das 16 horas, entrava e ficava até altas horas. Alguns alcoviteiros ficavam esperando o motoqueiro sair para destilar comentários venenosos no dia seguinte.

Aos domingos, Benevides nunca saía de casa cedo, a não ser para ir à missa já que era muito religioso. Por volta das 14 horas ele rumava até a locadora e sempre voltava com duas ou três fitas. O pessoal da locadora, por uma questão ética, nunca revelou seu gosto cinéfilo, porém a polícia descobriu que eram filmes policiais, pornográficos e de suspense. Mas os vizinhos nunca saberão ao certo o que se passava nas sessões de cinema que ele, Benevides, sempre assistia sozinho.

Aquela manhã de sábado foi diferente. O sol anunciava sua presença mais cedo. A rua parecia mais agitada do que de costume. Os vizinhos arrumaram mais tarefas e Benevides não mudou seus hábitos, exceto pelo fato de que seria o protagonista de uma trama macabra.

Ao deixar as sacolas foi para o banheiro. Quisera ele, num capricho inexplicável, lavar o corpo e a alma. Saiu, vestiu uma bermuda e na cozinha saboreou um café delicioso. Na garagem, estavam uma moto, os dois carros e o velho Bedelo deitado num tapete, dormindo o sono dos justos. A moto deixa claro que o visitante de sábado tinha chegado na sexta, dormiu lá e tem algo a dizer no caso do suicídio.

Sempre muito metódico, Benevides costumava planejar cada ato seu. Com sua morte não foi diferente. Na ida à feira, junto com as verduras e os legumes veio também uma corda. Ele comprou num armarinho, perto da quadra onde mora, cerca de 22 metros de uma corda grossa de nylon, nas cores azul e branco e que é utilizada para armar redes ou rebocar, de forma ilegal e perigosa carros velhos. Enquanto fez tudo isso, o visitante da moto dormia num dos quartos de cima do sobrado.

O corpo fora encontrado às 10h45 pelo dono da moto. Confuso, e sem entender o que se passava, chamou a polícia. Nessa hora, a rua encheu de curiosos vindo de todas as quadras. Sirenes, luzes piscando, isolamento do local e contenções das pessoas. O carro do IML chegou ao meio dia e todos viram quando saiu da casa, deitado numa gaveta, o corpo do estranho vizinho de modos estranhos.

Quem era esse homem?

Por que se matou?

CAPITULO V

Em 2003, Benevides estava prestes a se aposentar. Numa tirada de sorte acertou, sozinho, os números da loteria. Esta, estava acumulada em 45 milhões. Sua vida mudou radicalmente a partir daí. E mudou tanto que a solidão de antes deu lugar a dois visitantes. A loira com cara de arrogante e o motoqueiro com cara de garoto de programa. Mas a trama não é bem assim.

Na verdade, Benevides tinha se separado da mulher. Deixou para trás, nos arredores da Ceilândia, uma casa confortável, construída com o suor do rosto. Ali moravam sua esposa e seu único filho. Um jovem bonito, que estudava direito numa faculdade particular e que tinha tudo para ser um excelente advogado, mas nunca aceitou o que se passava com os pais. Dividiu sua vida entre algumas aulas na escola e a se meter em encrencas. Sempre que podia estava envolvido com alguma confusão: drogas, mulheres, polícia. Mas isso é outra história.

Com a separação, em 1995, foi para o Paranoá fixar residência e não mais se lembrar do seus infortúnios no casamento. A ex-mulher e o filho não o viram mais, desde então. Benevides recebeu uma certa carta que lhe contava detalhes de sua esposa traindo-o com um funcionário do governo. Sem suportar a vergonha dos comentários e a incerteza da paternidade do rapaz que ele amava como a um filho optou por sair de casa, deixar tudo para ambos e não mais encarar aquelas humilhações.

Quis a sorte que Benevides ficasse rico. Quatro anos de ausência, tanto da mãe como do filho, foram quebrados quando Mariuza, a ex-mulher, recebeu uma carta dizendo que o ex-marido estava muito bem de vida. Uma casa enorme, dois carros e muito dinheiro. A essa altura, seu filho estava envolvido com mulheres e alguns “amigos” que sempre o empurravam para a sarjeta. Passou num vestibular (dessas faculdades que se faz boa prova baseado num questionário socioeconômico – bastou criar riquezas para ser aprovado) e aos trancos e barrancos ia cursando Direito. Um ano de mensalidades atrasadas e uma infinidade de problemas com a polícia. Quando soube da fortuna do pai, resolveu investir e cobrar de Benevides responsabilidade. Claro, o pai não o jogou fora. Pagou-lhe advogados, quitou suas dívidas com a faculdade, deu-lhe uma moto de presente e o enviou a Goiânia para fugir das tentações e dos velhos “amigos”. Isso justifica as visitas de sábado, nos finais de tarde.

Mas ainda faltam explicações. Por que a feira todo sábado, horários religiosos, sempre bem aprumado. Benevides era vaidoso, desde os tempos de SLU. Ir à feira sempre bem aprumado era uma forma de manter viva sua auto-estima e também para impressionar uma jovem. Isso mesmo! Benevides estava amando, de forma platônica, uma bela moça que aparentava ter 19 anos. Morena, olhos castanhos, corpo bem delineado e que vendia verduras, frutas e legumes em uma barraca. Ajudava a mãe no sustento da casa. Era uma jovem estudante, estava completando o terceiro ano do segundo grau. A moça gostava de conversar com o simpático senhor. Era esse o prazer de um solitário de 50 anos, dono de uma pequena fortuna.

Essas visitas estavam sendo anunciadas à ex-mulher e ao filho. Antes, na pobreza do homem, Mariuza o trocou por um servidor público do Ministério dos Transportes. Na época, Mariuza tinha um ano de casada com Benevides. Quando ele soube da traição, a esposa, tentando se explicar, disse que ele não poderia abandoná-la por estar grávida. Mesmo incitado pela dúvida deixou a mulher, mas registrou o filho. Nunca questionou nada sobre isso nem tampouco revidou as humilhações sofridas. Depois de rico, ajudou-os no que era preciso, inclusive a manter a vida regada a festas e as farras da ex-mulher com o ex-amante, agora marido, funcionário do ministério.

EPÍLOGO

Benevides suportou mais do que essa situação. Suportou sozinho o estorvo em que se tornara sua ex-família. Uma mulher que cobrava pensão, um filho que lhe tirava dinheiro e até o atual marido dela. A grande pergunta é o motivo que o levara a aceitar tamanhas agressões. Benevides sempre fora muito católico. Casamento para ele era para sempre. Separado há oito anos, nunca quis alguém, exceto pelos últimos meses em que conhecera, na feira, aos sábados a doce Angélica. Era esse o motivo de sua alegria, porém carregava consigo uma infinidade de ameaças, dentre essas, a de que sua vida pregressa seria tornada pública. Morria de medo e de vergonha. Preferia morrer a ter que ser chamado de “corno”. Durante esses anos pagou pelo silêncio e também para não ver a sua honra ainda mais manchada.

A pessoa que, desde o inicio, denunciava a Benevides as traições de sua mulher também se encarregou de anunciar a ela a riqueza dele e consequentemente a existência da feirante Angélica. Era uma figura conhecida do casal Benevides e Mariuza. Um soldado PM que, antes de toda essa trama, fora namorado dela. Seu objetivo era uma vingança macabra, a distância, fria e calculista. Algo que só uma mente permissiva, doentia de um ser frustrado poderia maquinar. Em primeiro plano deu a Mariuza toda a sorte de bens que o dinheiro do ex-marido podia comprar. Carros, casas, faculdade para o filho, joias e o sustento de seu amante. Depois de tudo isso conquistado; a manutenção de um padrão de vida regado a dívidas, diria a ela sobre a presença de uma jovem que poderia lhe tomar tudo. Permitiria que Benevides soubesse e deixaria que esse se encarregasse de não mais aceitar as chantagens. Enquanto isso, também destruria a vida do pobre homem ceifando-lhe indiretamente a vida e com isso sufocando seu novo amor. É possível que, depois de tudo, esse amante infeliz fosse procurar a pobre Angélica para tirar-lhe tudo que fora recebido, a herança de Benevides. Em troca, talvez, lhe desse um falso amor.

Benevides não acreditou no que estava acontecendo e mesmo não sabendo de quem se tratava deu inicio ao seu plano de vingança silencioso. Sua vida conjugal estava resolvida, ou seja, separou-se em definitivo da mulher (a pedido dela que queria um novo casamento), ele nunca quis mantê-la com seu nome ou com o rótulo de impedida de se casar novamente. Já que existia um outro homem, seria melhor que essa fosse viver com ele e o deixasse em paz. Então poderia ir a um escritório de advocacia e deixar tudo, em testamento, para a moça morena de ar meigo e doce da feira dos sábados.

Para concluir o testamento, deu cabo à própria vida deixando para o filho uma moto, para a ex-mulher a sensação de culpa e para a sua musa inspiradora o resto de bens de que dispunha. E não era pouco. Talvez o que não lhe fora positivo seria a presença do mentor disso tudo, mas como nunca soube de quem se tratava, lamentou a vida e a sorte. Com o papel de embrulho escreveu sua última vontade. Registrar em uma frase e apenas para quem quisesse entender as suas intenções.

O bilhete reflete a sua sensação com relação a vida e ao amor. Tudo não passa de uma noitada, de uma festa em companhia dos amigos. Beber, fumar, transar e depois dormir. No dia seguinte, nada de concreto foi edificado e o que fica é a certeza de mais um dia perdido. Sem raízes, sem fins, sem nada.

Somente o vazio de uma noitada.

VALBER DINIZ
Enviado por VALBER DINIZ em 29/06/2010
Reeditado em 12/05/2011
Código do texto: T2348330
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