A Barraca
- Se até o amor é reciclável, por que toda essa merda não?-ele perguntou.
- Mas do que você está falando? Ficou maluco?-ela devolveu, com espanto.
- Eu tive um sonho muito bacana ontem. Depois de morto e decomposto, alguns átomos do meu corpo passaram pelas brechas da madeira do caixão e foram absorvidos pela raiz da árvore vizinha, indo fazer parte de uma das folhas que, comida por uma lagarta, que foi comida por um pássaro, fez essa minha parte ficar voando por aí, numa boa, fazendo uma pirueta atrás da outra, com rasantes e tudo mais.
- Seu subconsciente lhe deu uma aula de ecologia. É isso?-disse ela, fazendo um carinho nos cabelos dele.
- Mas o pássaro acabou morrendo, quando pousou numa horta,-continuou ele (mas com proposital indiferença ao comentário e o carinho, pois gostava de vê-la, sozinha, descobrir aonde ele queria chegar), mordido por uma cobra que lá rastejava. E o engraçado é que eu até senti a dor do veneno, como também, quando no pássaro ainda vivo, senti o vento passando e as variações dos gês positivos e negativos do seu voo. Só não gritei com a mordida da cobra porque essa parte minha, que o pássaro carregava, não tinha boca. Mas o que importa é que essa parte minha foi, com parte dele, absorvida pela raiz de um pé de alface e, migrando para a sua folha, veio a constar num sanduíche que o nosso neto teria comido em algum momento da vida dele. Isso, claro, se nós tivéssemos um neto.
- Ah! Entendi, agora sim. Quando é que você vai parar de encher o Luís e a Marisa com isso? Deixa eles programarem um filho de acordo com a conveniência deles. Que coisa!-completou ela, com evidente ar de bronca.
Luis era o filho deles, um casal de meia idade, conversando na praia de Guaeca, litoral norte de São Paulo, à sombra de um chapéu de sol.
- Bem, é claro que a idéia me persegue -prosseguiu ele-mas eu ia contar esse sonho depois. Acabei amarrando uma coisa na outra, pois as duas têm a ver. Disse que até o amor é reciclável, porque me dá vontade de matar os responsáveis por esses sacos plásticos que passam na nossa frente, quando a gente vem aqui.
- Mas o que saco plástico tem a ver com amor? -indagou a esposa. Ah! Já sei, entendi o espírito da coisa.
E ela entendeu mesmo. Conhecia o marido de cabo a rabo, em todos os sentidos. A cabeça dele parecia ter neurônios que ela usava de vez em quando na sua, pois as sinapses dos dele eram muito criativas.
- Vamos ver se eu estou certa -prosseguiu ela, tentando descobrir a moral da história. O amor, um sentimento complexo e difícil de administrar, ainda assim é reciclável, pois trazemos para as novas relações uma parte dele que não foi usada na anterior, como é o nosso caso, ok? (positivo, fez ele com o polegar). Pois bem, se até o amor, difícil que é, tem um jeito, por que esses sacos plásticos não? Acertei?
Ela tinha acertado de novo. Quase nunca errava, se é que se possa chamar coisas assim de erro. Ocorre que eles faziam essa brincadeira desde o início do namoro. Ela provava, continuamente, a cumplicidade dos dois, o quanto um entendia o outro e, como ela já estava no clima, ele prosseguiu:
- Olha essa moçada toda passando, não estão nem aí. Os sacos passam voando do lado deles e nada, sem reação, total indiferença. Que idade tem aquele garoto ali? Tá vendo? Acabou de deixar uma lata de cerveja amassada do lado de onde estava sentado, na areia, e tá se mandando agora, na maior sem cerimônia. Vai lá, puxa a orelha dele e você vai ver só. Vai dar descarga. O cara é uma privada, tem bosta na cabeça. E essa geração iogurte que tanto a gente ouviu falar? E os politicamente corretos? Onde estão?
-Você não gosta de nenhum dos dois.-disse ela, só para lembrar-lhe do óbvio.
- Claro, eu sei. Mas havia alguma esperança, só isso. Mas escuta, mudando de pato pra ganso, eu tô doido pra chegar em casa, pegar essa mulher bonita que está falando comigo e namorar ela a tarde toda. Topa?
- Hum, hum.- ela murmurou, pois adorava o desfecho dessas questões: ele revoltado, buscando nela compensações.
- Olha só isso aqui.–disse ele com o jornal de domingo na mão. Até parece que eu encomendei a frase e é do Edgard Morin, portanto, vale a pena. Escuta só: “O Brasil é um país em desenvolvimento, embora ele seja o da classe média, o que pode representar no futuro uma intoxicação consumista. É preciso recuperar o hábito de reparar os objetos para que o mundo não vire um depósito de sucata.” Que tal, ein? Muito bom. Reparar, esse é o problema. Essa molecada aproveita a era dos produtos descartáveis para descartar também a sua atenção. Que droga, por que é que eu estou dizendo isso? Justo pra você que já está careca de saber.
- Para desabafar, ué!- apoiou ela. Ainda bem que você faz isso, pois do jeito que o seu pavio é curto, se não fizesse, ia acabar agredindo aquele moleque da lata de cerveja ou essa senhora que está passando agora de maiô azul.
-Por quê? O quê que ela fez? Eu não vi nada.
- Acabou de jogar o palito do sorvete na areia com a maior naturalidade. Como diria o Morin, ela não repara.-comentou a esposa, desapontada.
- No caso dela, doe mais ver – ele completou. Afinal de contas é uma marmanjona. Deve ter os seus 40, por aí. Ainda bem que eu não vi nada, um sofrimento a menos. Quando é da nossa geração ou próxima, eu fico mais injuriado, pois nós somos modernos e não pós-modernos, como todo esse pessoal que adora assistir e nunca se envolver. Olha aquela família, coitada.
- Por quê? O que eles fizeram? Aí fui eu que não vi.-disse a mulher.
- Eles estão tentando montar aquela barraca retangular. Aquelas que fazem uma sombra grande lembra? Nós quase compramos uma. Pois é, eles terminam um lado e, quando passam para o outro, o vento derruba o que eles já montaram. As duas crianças, que devem ser os filhos, ficaram com vergonha e sentaram na areia. Os pais, coitados, já estão lá há mais de meia hora, tentando firmar melhor os canos e nada. Erguem um lado e cai o outro.
- Mas por que as crianças estão envergonhadas?-ela perguntou.
- Tá vendo aquele grupo de jovens nas esteiras logo do lado direito deles? Devem estar tirando um sarro ou algo assim.
De repente, com uma agilidade surpreendente, incomum a uma senhora de 47 anos, a mulher se levanta da cadeira dobrável e sai correndo em direção ao mar.
- Amor!? O que é que foi? Aonde você vai?-ele gritou.
Como ela já estava com uma boa dianteira, meio aflito, ele a foi acompanhando com a visão, sempre olhando à frente da esposa, atento a algo que justificasse aquela correria. Ela ia em direção a uma criança que estava chorando e, assim que chegou, a pegou no colo, consolando-a. Depois uma mulher, com seus vinte e poucos anos, veio correndo do mar até ela e a criança mudou de colo. Falaram-se um pouco e a sua esposa já vinha retornando.
- Nossa, que susto amor!-disse ele assim que sua mulher voltou.
Ela precisou de um tempo para responder, pois estava ofegante. Recuperou-se e explicou:
- Você reparou como a areia está quente. Dá para fritar um ovo nela. A criança tentou seguir a mãe e, sem sandália, ia e voltava para lá e para cá com os pés queimando. A mãe só percebeu quando me viu correndo até a filha dela. Que sorte eu ter visto a menina a tempo, não acha? A mãe morreu de agradecer.
- Incrível como você consegue conversar comigo e prestar atenção em outras coisas ao mesmo tempo. Outras coisas que valham a pena, eu quero dizer. Amo você -disse ele, com ares de menininho carente e dando-lhe um beijo na boca. Aliás, - continuou ele -assim que você se recuperar dessa corrida, vou lhe pedir um favor.
- Eu não vou buscar nada no trailer da Isaura agora, estou cansada. Daqui a pouco eu vou lá. Por quê? Você prefere a sua batida de limão sempre ao meio dia. Ainda são onze horas. É cedo.
- Não, não é nada disso. É que eu não agüento mais ver aquela família pagando aquele mico todo com a montagem da barraca. Os dois filhos estão até com ar de choro de tanto constrangimento, olha lá. Aquela molecada do lado deve mesmo estar gozando deles, pois as crianças os olham, ficam murchas e param de ajudar os pais que, bravos, os forçam a voltar. Eu vou lá. Você fica aí descansando e vai depois.
- Não, eu vou junto, mas vamos deixar as nossas coisas aqui?-ela perguntou.
- Não, é meio arriscado. Vamos levar tudo. Faz de conta que a gente está procurando companhia para conversar. Eles devem regular com a nossa idade. Talvez dê um bom papo. Aí, a gente aproveita e os ajuda na barraca. Aposto que não vai ferir o orgulho deles e, depois, eu já estou quase indo dar uma surra naqueles jovenzinhos idiotas que estão assistindo tudo de camarote.
- Não precisa, amor, com o tamanho que você tem, é só olhar-disse ela toda orgulhosa.
Ele fez uma pose estilo Tarzan, rindo e batendo no peito, para depois ajudá-la com as cadeiras, toalhas, etc e foram para lá. O grupo de jovens estava mesmo tirando sarro como o marido imaginou, de um modo até muito abusado. Mas pararam imediatamente com a chegada dos dois. Ou dele, mais propriamente, com todo o seu tamanho.
Foram muito bem aceitos e bem vindos pelos donos da barraca que, finalmente, a viram montada. O bom papo imaginado realmente se deu. Repetiram a dose alguns outros dias da temporada, o que culminou com um divertido passeio em grupo na ilha. Nela encontraram mais um casal amigo de um deles, que no final do dia, já eram amigos comuns. Encerraram a noite no Ponto das Letras, com cafés, pedaços de bolo e muita conversa, não só sobre sacos plásticos e latas de cerveja, mas sobre política, perspectivas econômicas do país, os últimos livros lidos por cada um, os filmes que valem a pena serem vistos, a questão do amor correspondido ou não, a visão do futuro próximo, a questão das drogas, dos netos, a noite linda que estava fazendo lá fora e etc. Foram conversas típicas daquela parte boa da classe média: a que não se isola nas compras e entra nas lojas sem fugir da vida. Nenhum deles sabia reciclar plástico, nem metal, pois há técnicas especiais para isso, claro, sem contar a vontade política e a fiscalização necessária que ampare a coisa toda como tal. Porém, sem o uso de técnicas especiais, mas simplesmente postura de vida, desde a praia até aqui na balsa, voltando, eles vêem reciclando muita humanidade. E pais que reciclam humanidade, como alguém já disse, costumam fazer filhos mais educados e melhores para o planeta, ao invés de se preocupar com um planeta melhor para os filhos. E é esse o ponto que desmerece boa parte dessa nossa classe média: a falta de classe, até mesmo a média, para questões que não dependam de seu poder aquisitivo. Destrata com cinismo medíocre tudo aquilo que escapa do alcance de seu cartão de crédito, tornando sua sensibilidade com pessoas e situações inversamente proporcional ao limite do mesmo. E a alma, já etiquetada, procura nas vitrines aquilo que deixou de ver fora delas como, por exemplo, a razão de ser daquele seu reflexo no vidro.
Quanto ao marido e a esposa, protagonistas dessa história, tive o prazer de conhecê-los mais profundamente. Sei o bastante sobre eles para justificar uma sadia amizade, bem como todos os detalhes da história em si. Nossos encontros na praia, hoje são saídas conjuntas à ela, pois também moram em São Paulo, como nós. Costumamos dar boas risadas com a lembrança do dia em que nos encontramos pela primeira vez, quando eu, minha esposa e filhos tentávamos erguer uma barraca sem sucesso, até que eles chegaram.