A Garota que vendia incenso.

Nasceu no dia 24 de setembro de 1987, precisamente as 00:37 minutos. A primavera de 87 iniciou-se exatamente naquele minuto do dia 24. A mãe, Gardênia, Maria Gardênia Flores Jardim ou simplesmente Flor, naquela manhã de primavera, recebeu várias flores. Também haviam rosas, tulipas, o pequeno quarto da maternidade, lembrava uma loja de incenso, os perfumes, os aromas misturavam-se. Flor não via, estava deitada na cama. O parto tinha sido dificil. Mas ela podia sentir o cheiro.

De olhos fechados na cama, vestia apenas uma manta branca que realçava ainda mais sua negritude. Negra, 27 anos, cabelos encaracolados, grandes, quanto estava de pé batiam no meio das costas. Mas não era muito alta, aproximadamente um metro e setenta. Os olhos eram castanhos mel, lábios fartos, daqueles que todos sonham beijar. As mãos, mãos que seguravam aquele, bebê, eram delicadas, apesar da vida dura de Flor. Eram quentes, muito quentes, cheias de calor, calor de vida. Aliás, vida também havia nos seios, eram lascivos, espertos, fartos, enfim eram a própria vida.

A enfermeira trouxe enrolado numa pequena trouxinha, um presente: o bebê, uma linda garotinha, Flor segurou-a, uma lágrima escorreu vagarosamente, como o mel das abelhas quando caem em gotas da colméia, primeiro pelo olho esquerdo, depois o direito.

Pensou: Tem a boca do pai. Este o pai, ninguém sabia quem era. Ser anônimo. Um pensamento escapou em voz alta: “Aquele f.d.p” “Aquele negro safado”.

De repente Gardênia sentiu uma forte dor. Olhou para o chão do quarto notou que o sangue que escorria pelo mesmo era o dela. Deu um grito, o último grito, que assustou e fez chorar a pequenina.

Morreu. Morreu ouvindo o choro do bebê.

A menina foi batizada: Maria Gardênia Flor Jardim, como a mãe. Porém desde pequena era chamada por todos no orfanato de Florzinha.

Cresceu sem mãe e sem pai, da mãe guardava apenas uma foto, já desgastada com o tempo. Afinal já era 2005, setembro de 2005 e Florzinha tinha 17, estava preste há completar 18 anos.

Não conseguiu ser adotada. Florzinha viu suas companheiras de orfanato se despedirem aos poucos. Das que restaram: Florzinha e Joana. Em comum: negras. E estava na hora de deixar o orfanato.

Setembro de 2007, Florzinha, juntou em uma pequena mochila, tudo que lhe restava. Na bagagem, não tinha apenas roupas, mas também lembranças de cada momento vivido naquele orfanato.

Era hora de começar uma nova vida, lá fora, no mundo. Para Florzinha na verdade, era um recomeçar.

Contudo, na vida nem tudo são flores, há os espinhos, a nos lembrar, o quão duro é a luta pela sobrevivência.

A favela, com suas ruas sujas e barracos de madeirite, cobertos com lona recebeu o mais embriagante dos perfumes, Florzinha. Conquanto, haja sonhos a realidade é cruel.

Da mãe, Florzinha, herdara não apenas o nome, mas também o gosto pelas flores, rosas e seus cheiros, perfumes e aromas.

Procurou emprego em floriculturas, mas quando perguntavam onde morava, falava para todos que morava na favela. Mesmo sendo autodidata, no ramo da floricultura era sempre preterida. Ou geralmente ouvia a famosa frase: A vaga já foi preenchida.

Um dia Florzinha, passou em frente uma loja de incenso, e se encantou com o cheiro que a loja exalava. Viu uma placa com os dizeres:

PRECISA-SE DE VENDEDOR (A) EXTERNO.

Não pensou duas vezes. Entrou. Apresentou-se e saiu com uma sacola. Florzinha agora era vendedora de incenso.

Canela, alecrim, jasmim, gardênia seu preferido...

Bares, restaurantes, praças, ônibus, faróis, enfim qualquer lugar onde havia pessoas lá estava Florzinha, com sua sacola no ombro, oferecendo incenso. Por onde passava deixa seu cheiro, o cheiro dos seus incensos...

Com o passar do tempo, toda a vida noturno da cidade a conhecia. Fazia-se presente em saraus de poesias, em lançamentos de livros, nas quartas-feiras em dias de jogos lá estava Florzinha nos bares, aromatizando o mundo. Pela simpatia e beleza vendia muitos incensos.

Assim era a vida de Maria, de noite vendia incenso, de manhã matriculou-se em um supletivo. Estava decidida, seria jornalista, seu sonho era escrever acerca dos cheiros, das cores, das flores...

Vida seguia sem interstício, de noite e de madrugada vendia incenso, de manhã estudava, à tarde, bem a tarde ela dormia. Porque ninguém é de ferro.

Uma madrugada voltando de mais um expediente, Maria Gardênia, fez o mesmo caminho que estava habituada a fazer. Era noite de uma beleza exuberante. Florzinha olhou para o céu, nunca tinha visto-o tão límpido e estrelado. Um pensamento escapou-lhe a mente: Minha mãezinha cuida de mim.

Naquele momento, sentiu um frio tomar conta de todo seu corpo. E de repente uma aflição estranha, tomou conta de seu pensamento.

Sentiu uma vontade louca, de estar no seu barraco de madeirite e lona. Em meio a flores, rosas, plantas que cultivava em casa. Lá se sentiria segura.

Em meio ao turbilhão de pensamentos que tomavam conta de seu ser, Flor, sentiu um vulto, passar pela suas costas. Quando se virou, só conseguiu balbuciar algumas palavras, desconexas e incompreensíveis.

Na manhã seguinte no outro lado da cidade, João Nelson Vieira, casado, dois filhos, empresário bem sucedido. Levantou e foi tomar o seu café, abriu o jornal que se encontrava em cima da mesa, como todos os dias. E uma noticia que leu em meio a tantas outras, passou-lhe despercebida. No canto da margem superior esquerda, pagina 05, a seguinte chamada: Findou-se o aroma da cidade. Maria Gardênia Flores Jardim conhecida por todos como Florzinha, a garota que vendia incenso, foi encontrada morta. O corpo tinha sinais de estrangulamento, a polícia acredita que a moça antes de ser morta, tenha sido estuprada.

Fim

Edergênio Vieira
Enviado por Edergênio Vieira em 23/06/2010
Reeditado em 23/06/2010
Código do texto: T2336328