Porém
À beira do fogo, filosofando sobre o mundo sutil que mal conhecemos, o assunto versava sobre a força do poder da palavra e a existência (ou não) das coincidências.
Chegada havia pouco mais de um mês em Ubatuba, a jovem brasiliense e bióloga Ana, com seu sotaque goiano, garantia com veemência que uma palavra por muitas vezes repetida acabava por se materializar. “É uma lei cósmica!” – dizia, num tom de admiração que parecia querer dizer: “Só vocês é que não sabem disso!”.
Porém, Ana tinha o tal “vício de linguagem” que por vezes, como um vírus, ataca nossa maneira de falar por algum período. Hoje, entre os jovens, é comum se ouvir o “tá ligado?” Tem uns mais exagerados que numa frase de cinco palavras, seis é “tá ligado?”.
Tem também aquelas pessoas que não tiram da boca a expressão “por Deus!”. Falou, mexeu, lá vem: “Por Deus, menino! Vá tomar banho, por Deus!”.
No caso de Ana era o “Porém”. Qualquer que fosse a frase que dissesse sempre cabia um ou mais “poréns”. Acrescentado o sotaque nortista, o “porém” de Ana ganhava força na primeira sílaba, o que dava à expressão uma característica especialmente simpática e particular quando ela a entremeava nas conversas: “Pensei em ir à praia hoje, “pórem”, vou deixar para amanhã”; “Eu ia ligar pra você, pórem, me esqueci”. E lá ia ela, inteligente, falante e entusiasmada com o seu trabalho e com as descobertas espirituais que estava vivenciando na cidade que acaba de conhecer.
Alguns dias depois Ana se mudou com alguns amigos para uma pequena chácara no bairro do Taquaral, formando entre eles uma espécie de “república”, dividindo entre todos as despesas com o aluguel.
A casa – simples, nova e arejada – ficava em lugar aprazível, com muitas árvores, natureza exuberante e um córrego que serpenteava entre os arbustos e gramados ao pé do terreno em declive.
Da varanda da cozinha podia-se ver entre as pedras banhadas de sol as águas cristalinas murmurando nos côncavos do caminho. A diversidade e quantidade de pássaros diurnos e noturnos, os animais silvestres e o colorido das parasitas espalhadas pelos troncos davam ao lugar uma atmosfera de beatitude, que deixava quem ali se quedasse propenso à meditação e pensamentos reflexivos.
Uma manhã, quando o sol mal alcançava o beiral da grande janela, ainda dormindo profundamente Ana ouviu ao longe alguém que repetia: “Porém! Porém!”. Despertando lenta e preguiçosamente sentia estar numa espécie de bruma na qual imagens de sonho fugiam à medida que ia tomando consciência da manhã luminosa que anunciava mais um dia quente de verão.
Completamente desperta espreguiçou-se pensando que deveria tomar um desjejum ligeiro se quisesse aproveitar o sol da manhã na praia de Itamambuca, ponto de encontro combinado com alguns amigos. Antes que pudesse jogar os lençóis para o lado ouviu novamente, agora bem claro e próximo à janela: “Porém! Porém!”.
Arregalou os olhos numa expressão de espanto: “Ainda estou sonhando?”. Pulou da cama, abriu a porta da cozinha e saiu para uma varanda sobre o jardim. Diante de um carrinho-de-mão cheio de areia uma mulher de meia idade, com corpo de adolescente metido em calças “jeans” e botas de borracha, tinha as mãos na cintura, de onde pendia um facão. Sua voz autoritária não combinava com o aspecto físico delicado e os longos cabelos louros e cacheados que desciam pelas costas, presos num rabo-de-cavalo:
-“Porém! Porém!”.
Ana não entendia aquela cena insólita e, debruçando sobre o balaústre da varanda, dirigiu-se à mulher quase gritanto: “Bom dia!”.
A mulher fitou-a com seus grandes olhos azuis e abriu um sorriso:
- Oh! Bom dia – disse aproximando-se enquanto explicava sua presença – Sou Sara, a dona da chácara, sua senhoria. Como combinei com os rapazes que alugaram a casa, a manutenção da chácara é por minha conta. Estou aqui preparando o local para uma cozinha externa com fogão à lenha. E você, como se chama?
Ana apresentou-se e ficou olhando um tanto desconfiada para a tal Sara que, pelo sotaque, parecia ser nordestina. Ficou imaginando se aquela mulher não era meio maluca vestida daquele jeito numa manhã de sol e gritando em direção às árvores a palavra “porém”.
A senhoria já ia entabular uma conversa sobre as vantagens que a chácara oferecia quando, delicadamente, Ana a interrompeu:
- A senhora me desculpe, dona Sara, mas pode me dizer por que olha para aquelas árvores e grita “porém?”.
A mulher deu uma risada cristalina e divertida:
- Ah! Estou chamando meu ajudante, o “Porém”.
Ana entendia cada vez menos:
- Seu... Ajudante!?
Sara voltou-se novamente para o conjunto de árvores e gritou:
- Póóóóreeeem!
De entre as bananeiras surgiu um negro magro e alto, calças arregaçadas nos tornozelos, sem camisa e pés descalços. Não era velho, mas era como se fosse. Trazia um facão numa das mãos e um cacho de bananas nos ombros. Vinha de cabeça baixa e suava muito.
A mulher abriu os braços e disse:
- Este é o “Pórem”.
Abismada, Ana perguntou baixinho:
- O nome dele é... “Porém!?”.
Sara riu e procurou a sombra de uns arbustos, onde se sentou e começou a enrolar um cigarro na palha:
- O nome dele é Manuel – começou explicando – a gente chama de “Pórem” porque tudo que se manda fazer ele faz, porém... Demora demais, faz errado ou esquece.
Cabisbaixo, sem levantar os olhos em nenhum instante, “Porém” ajeitou as bananas entre as raízes de um pé de amêndoas. E tomando do carrinho e de uma pá afastou-se em silencio, recluso em si mesmo.
“Porém” nasceu Manuel numa cidade de Minas Gerais. Foi ser pedreiro, como o pai. Constituiu família e pretendia chegar a mestre-de-obras. Tinha planos de uma casa grande, sólida e arejada para a mulher e os dois filhos. Porém... A Natureza, durante uma tempestade de verão, lavou o morro onde ele tinha a casa frágil e sua família foi soterrada.
Quando chegou do trabalho, no lugar das paredes caiadas havia um vazio e abaixo uma massa disforme de galhos e barro, aparecendo apenas uma ou outra telha aqui e ali. Pedaços de caibros apareciam espetados no lamaçal, como biscoitos num enorme sorvete.
Manuel não gritou, não praguejou, não se agitou em desespero. Ficou ali parado, mudo, de olhos secos e perdidos no nada em que se transformaram todos os sentidos da sua vida.
De sua vitalidade e fala fácil, como bom contador de “causos”, pouco sobrou. Caiu num mutismo indecifrável e se entregou à bebida. Mesmo bêbado pouco falava. Deu para caminhar a esmo e ignorar os amigos e parentes. Um dia, sumiu!
Doze anos depois, ali estava ele: “Porém”.
“Porém” não sabia dizer direito como chegou a Ubatuba. Só sabia que “foi há muito tempo”. Dormia nas praias, sob as marquises, no coreto. Comia o que lhe davam e bebia tudo que conseguisse.
Numa noite de chuva o marido de Sara, penalizado com aquele homem encolhido sob uma marquise, levou-o para casa. Talvez pudesse lhe ser útil no sítio.
O sítio do casal, à uma hora de caminhada acima daquela chácara, era notável pela sua limpeza e cuidados com a Natureza. Um rio de águas transparentes sobre pedras de todos os tamanhos formava em alguns trechos cascatas borbulhantes e frias.
Uma horta se espalhava entre os pés de cacau, palmito e frondosas árvores. Ali nada era cortado ou arrancado se não fosse extremamente necessário. Tudo era limpo e preservado. Animais silvestres, e até selvagens, viviam naquele sítio sem medo ou sustos.
Nesse sitio foi morar Manuel. No paiol arrumou-se um espaço com cama, uma mesa e cobertores. Do lado de fora, sob uma varanda de sapé, uma destilaria improvisada produzia uma cachaça aceitável aos apreciadores do “aperitivo”.
Manuel podia ficar ali, mas tinham dois “poréns”. Primeiro: teria comida, roupa limpa e uns “trocados” aos sábados, mas teria que trabalhar na manutenção do sitio. Segundo: aceitar o desafio imposto pelo “patrão” de não beber durante a semana, mesmo tendo diante da porta as gotas transparentes e brilhantes a pingar, convidativas e lentamente no grande garrafão verde que as ia colhendo.
Manuel concordou com um movimento de cabeça e assim foi.
Durante a semana obedecia aos mandos e já na sexta-feira tomava de uns trocados, uma garrafa da “pinga do sítio” e sumia, só aparecendo na madrugada de domingo ou na segunda-feira. Por diversas vezes o “patrão” recolheu-o quando o encontrava tropeçando pela avenida ou dormindo na praia com mais meia dúzia de indigentes, esquecido de que morava em algum lugar.
Sara e o marido tinham boas terras. Sem filhos, cuidavam dos bichos, do sustento e reverenciavam a Natureza. Tudo parecia ir bem, porém...
A natureza humana ainda engatinha nos mistérios do espírito. O orgulho, a ganância, o desejo de vingança, os atritos com seus semelhantes e o impulso do instinto ainda são como feridas abertas nas almas. Qualquer resvalo pode provocar sangramento. E assim, num sábado, tudo isso sangrou.
Devido a uma discussão acirrada com a família do marido, numa briga que já se arrastava há anos em rixas e ofensas pela posse de mais alguns metros de terra, Sara, uma sergipana “arretada”, que aprendeu com o pai a “não levar desaforos pra casa”, puxou de uma espingarda e atirou no cunhado.
Ferido no abdome o homem agonizou no chão de cascalho da estrada e morreu sob o sol forte daquele verão antes que pudesse ser socorrido. Sara fugiu e o marido (suspeito de cumplicidade) escondeu-se por algum tempo.
A manhã clara daquela segunda-feira prometia um dia perfeito de verão. Caminhando entre o frescor da vegetação “Porém” subia o morro, quase bom da ressaca.
Quando passou pela chácara não entendeu porque Sara derrubara e incendiara a casa em que Ana e seus amigos haviam morado. Aquele pessoal havia voltado para Brasília há pouco mais de uma semana e a casa era nova. Porque a “patroa” fez isso?
Descuidado, tomou fôlego e se dirigiu ao sítio. Tinha fome! Porém... Não havia mais sítio. Pelo menos no que diz respeito a um sitio habitável. A casa era um amontoado de cinzas, brasas e ferros retorcidos. Do paiol, construído com bambu e madeira, não restou nada alem de cinzas esbranquiçadas que se espalhavam com a brisa.
Pela segunda vez em sua vida Manuel não teve palavras, nem um gesto, nada. Sem compreender a razão de tudo aquilo se virou e desceu o morro. No botequim do bairro pediu uma pinga e foi lá que ficou sabendo da tragédia e da reação dos revoltados com o crime.
Tudo que pertencia a Sara e ao marido foi depredado, queimado, consumido. Por causa de um pouco mais de terra e das paixões humanas, esses espíritos frágeis e carentes de sabedoria deixaram-se arrastar pela ilusão da vingança e a falsa força do orgulho, fazendo com que tudo se perdesse por nada.
“Porém” ainda perambulou pela cidade por algum tempo, depois sumiu. Alguém disse ter visto um homem parecido com ele em São Luiz do Paraitinga, outros pensam tê-lo visto em Paraty, porém... Ninguém tem certeza.
Ana mora em Brasília e um dia desses enviou um e-mail para um amigo que andava um tanto deprimido com um amor mal sucedido. Ela insistia para que esse amigo afirmasse todos os dias o quanto ele era feliz e amado, mesmo que ainda não o fosse.
Dizia o texto da mensagem: “Acredite, meu querido, a palavra tem forte poder. Se a repetirmos constantemente e com convicção, o Universo acaba por cristalizá-la. Porém, presta atenção na qualidade daquilo que você anda repetindo sem perceber. Lembre-se que NADA é coincidência, TUDO é providencia. Aquilo que gravas em palavras na atmosfera que o circunda não lhe será negado, porém, providenciado. De uma forma ou de outra acabará se manifestando na sua vida. Lembre-se que a palavra é ferramenta poderosa, porém... é preciso muito cuidado. Abrace com amor Ubatuba, com todos os seus poréns”.