NA CONTRAMÃO DA VIDA
Na contramão da vida, a miséria, com um leve sorriso de desdem, desafia o perigo e desfila por entre os carros que, alinhados em fileiras paralelas, seguem, urgentes e indiferentes, o seu curso sem sequer se aperceberem do que está acontecendo ao redor.
Como numa passarela, inesperada e inusitada, aquele homem negro, surgido não sei de onde, vem vindo na direção contrária, trazendo no rosto um sorriso débil que chama a atenção e segue por entre os carros em movimento, indiferente ao perigo, por toda a extensão da avenida.
O inusitado da cena deixa uma perplexidade paralisante que impede a reação de sacar da câmera para registrar aquele marcante episodio. No entanto, deverão ficar gravadas na mente de alguns que assistiram esse episódio intrigante as impressões daquilo que as retinas registraram e as emoções que esse episódio desencadeou no coração dos mais sensíveis.
Parecendo alheado de tudo, ele continuou seu desfile por entre os carros em movimento por toda a extensão da avenida, balançando displicentemente um saco de supermercado que parecia conter um objeto não identificado.
Quase desnudo, ele desfila as marcas de uma grife cujo modelito veste os tons e as formas de um mundo paralelo, cujas interseções, quando soem acontecer, deixam claros os conflitos e os antagonismos das desigualdades sociais, num mundo dividido pelo poder do dinheiro, a serviço do consumismo exacerbado e elitista.
E enquanto o homem segue peitando o perigo, os carros seguem céleres e indiferentes rumo aos seus destinos e a vida segue o seu inexorável curso...
Passada a perplexidade do primeiro instante, resta a cada um, que teve a sorte ou o azar de presenciar esse espetáculo de insanidade e desesperança, fazer uma reflexão sobre os valores em que a sociedade está calcada. Talvez a partir daí possam ser encontradas as respostas para tantas questões mal resolvidas que afetam a nossa vida e nos tiram a tranquilidade.
Por tudo o que estamos assistindo todos os dias, fica cada vez mais evidente que esse universo cansou de ser invisível e quer se mostrar, se dar a conhecer para as pessoas que, por tanto tempo, passaram ao largo fingindo não ver os subterrâneos onde, como ratos, vive negando a sua humanidade, uma boa parte da população, gente como nós, que habita esse planeta chamado Terra.
Ninguém sabe quem ele é. De onde vem. Nem para onde vai. Não sabe seu nome. Nem tampouco o porque daquele gesto tresloucado. Provavelmente ninguém vai ficar sabendo o que aconteceu com ele depois dali, a não ser que essa sua aparente brincadeira tenha tido um final trágico. Aí sim, ele vai virar manchete de revistas e jornais, que aflitas por notícias quentes, vão estampá-lo nas primeiras páginas por toda a cidade. Quem sabe nos telejornais locais e até nacionais do horário nobre da televisão. Mas então, já pode ser tarde demais!