O mendigo e as flores
Léia estava apavorada. Dois dias de chuva sem parar. As improvisadas paredes de sua casa estavam completamente encharcadas. O teto só não desabara por milagre. O chão estava sólido. O monstro que lhe tirava o sono nas últimas noites era o rio que ficava ao lado de sua casa. Nem tinha tantos metros assim. Os homens da prefeitura, já tinham vindo diversas vezes, fazer a limpeza do rio. Em outras ocasiões utilizaram uma draga enorme, fizeram uma espécie de canalização. Quando a chuva começava a cair, Leia só se lembrava da enchente. E sua preocupação começava. Rezava, rezava, rezava. E se acontecesse...? Começava a se perguntar, quando se pegava entrando em pânico, às vezes, esquecia mesmo de rezar, então nada mais fazia, ficava horas muda, olhando a chuva cair e tentando se aquecer como podia. O céu ainda estava branco naquela madrugada chuvosa e feia. O frio invadiu a casa. O pequeno Mateus chorava baixinho. Ela trocou tanto o menino, e estava arrasada. As fraldinhas descartáveis estavam se acabando...
Com a chuva, seu cunhado, não tinha vindo, como de costume, trazer as compras e as coisinhas do Mateus. O celular estava sem cartão. A Sandra sua irmã mais velha, só queria ligar para dar bronca, sermão e ameaçar que ia tirar o Mateus...
Tanto frio. Tanta chuva. Há muito tempo, meses, Léia, não se via tão deprimida. Lembrou-se do irmão. Pássaro preso, condenado, não podia ver os filhos, não podia ver a família. Revirou-se no meio de suas cobertas e fingiu que não escutava os resmungos do menino.
Amanheceu a chuva parou. Olhou a rua, vazia, tranqüila. Estava com Mateus no colo,
Tentando acalmá-lo quando escutou alguém chamar: - É aqui que mora? Leia, correu a atender, sem esperar o homem terminar a frase. Olhou para a figura do pobre a sua frente e esqueceu-se de seus problemas. Bem alto, magro, moreno, cabelo encaracolado, mas grudado na cabeça, os dentes apodrecidos, a roupa imunda, rasgada, se cobria com uma espécie de manta, cobertor, todo colorido, muito diferente. Trazia em uma das mãos uma vara comprida, como se fosse um bordão. Era um mendigo. Leia ficou com tanta pena do pobre homem. Que fez sinal para ele entrar. O homem sem jeito, acabou entrando na casa de Leia. Olhou ao redor, notou as paredes ensopadas, o teto quase desabando, mas nada falou. Léia lhe perguntou: - O senhor vem de onde? Traz alguma notícia para mim? Como conseguiu chegar até aqui? Os homens da boca não barraram sua entrada? O mendigo respondeu sorrindo mostrando a miséria em seus dentes podres: - Eu vim do mundo. Os homens da boca, se algum dia foram homens, já se foram. Quando passei tinha uma pequena multidão, ali na entrada da rua, amontoada, assustada. Tinham três ou quatro deitados no chão, apagados, cobertos com um plástico preto. Nem notaram minha passagem.
Léia ficou arrepiada, até a espinha. Os homens da boca apagados. Significava que o outro lado estava ganhando território. E o mendigo continuou: - Não se assuste, não. Foi mesmo a polícia, que assoprou. Léia ofereceu-lhe café quentinho, ele bebeu tudo. E pediu mais. Léia lhe deu. Ele falou, falou, falou. Léia escutava, mas não estava mais ali. Seu espírito vagava em outro lugar. O mendigo com sua conversa narrou-lhe fatos do dia-a-dia de suas andanças e misérias. Ela viajou com a narrativa. Ele se encantou, pois alguém lhe deu atenção, e uma xícara de café quente. Depois foi embora, agradecendo com bênçãos e palavras de bondade que ela não escutava há tanto tempo. Ao sair, os farelos do pequeno pão que Léia lhe dera com a xícara de café se esparramaram pelo chão, junto com os farelos do pão, Léia notou algumas sementes. Assustada, pegou logo a vassoura e varreu para a rua, os farelos e as sementes, com medo que fosse alguma coisa desconhecida...
Alguns dias depois, o sol surgiu belo e radiante. As águas do rio começaram a baixar. Léia recebeu a visita do cunhado e da irmã. Trouxeram compras, coisinhas para Mateus, e também uma novidade. O irmão Dinho, já tinha data marcada para a liberdade. Ficou muito feliz. E jurou a si mesma, que iria lutar para ajudar seu irmão. O tempo foi se passando e Léia soube pelos vizinhos que o terreno onde morava ia ser doado pela prefeitura. Passou a ficar ligada nos comentários.
Uma tarde, Léia se viu desesperada e quase morreu de susto, A polícia estava batendo, não tinha como impedir que eles entrassem, revirassem toda sua casa, nos pequenos detalhes. Tudo, tudo foi revirado. As pequenas gavetas do armário de Mateus, seus sacos de roupa, até seus mantimentos, jogados ao chão. Uma vizinha que conhecia Léia, desde muito, e sabia de toda a sua história, telefonou para o pai adotivo de Léia, que veio rapidamente. Quando o pai de Léia chegou à polícia já tinha ido embora, mas a narrativa da filha deixou o pai muito chocado. Jamais esperava que acontecesse aquilo com sua pobre filha. Ela tinha sido espancada, e “convidada” a ir com eles no carro. Ela
não foi, pois sabia que se lá entrasse não voltaria. Dera sorte de não ter sido levada. Apesar de nada ter feito de errado, morava em um local muito freqüentado por todo o tipo de pessoas. Não era de estranhar a “batida” da polícia. Neste dia deu sorte, pois Mateus estava com os padrinhos, a irmã e o cunhado de Léia.
O tempo foi passando, depois daquela tarde, Léia, resolveu fazer alguma coisa por si mesma. Não queria acabar seus dias como seu irmão, o Dinho. Com o coração apertado levou Mateus para a casa de Sandra, e arrumou um trabalho, era difícil, chato, mas dava para ganhar algum dinheiro sem depender totalmente do cunhado, dos vizinhos. Vendia cachorro quente e salgadinhos, em um carro adaptado. Seu patrão lhe pagava por semana. Ficava de cinco da tarde, até meia-noite. Vinha para casa com medo, pois o inverno mal acabava. Uma manhã que se levantou e saiu para comprar pão, notou o caminho ao lado de sua casa coberto de flores, por todos os lados. Sem saber por que se lembrou do mendigo e das estranhas sementes que tinha varrido para fora de sua casa. Elas germinaram, cresceram e formaram um maravilhoso caminho de flores. Quando vinha voltando com o pão na mão, recordou as palavras do pobre homem. ”Amigo, não é simplesmente aquele que te acompanha, amigo é aquele que lhe abre a porta, e não lhe pede para sorrir, nem cantar e dançar, amigo é aquele que te recebe em sua miséria e pobreza, e não pede nada, apenas escuta o que tens para narrar”. Sentiu-se reconfortada, e deixou de sofrer tanto e lamentar, afinal o mendigo, uma espécie de poeta louco lhe deu o melhor presente de todos os tempos, as sementes da esperança, que se transformaram em flores e lhe mostraram que sempre podemos modificar nossas vidas, nossos caminhos, basta acreditar e ter muita bondade no coração.
Publicado no Recanto das Letras
Aradia Rhianon
(definição de amigo - extraída em parte do livro "Cidadela - Antoine de Saint Exúpery"
Léia estava apavorada. Dois dias de chuva sem parar. As improvisadas paredes de sua casa estavam completamente encharcadas. O teto só não desabara por milagre. O chão estava sólido. O monstro que lhe tirava o sono nas últimas noites era o rio que ficava ao lado de sua casa. Nem tinha tantos metros assim. Os homens da prefeitura, já tinham vindo diversas vezes, fazer a limpeza do rio. Em outras ocasiões utilizaram uma draga enorme, fizeram uma espécie de canalização. Quando a chuva começava a cair, Leia só se lembrava da enchente. E sua preocupação começava. Rezava, rezava, rezava. E se acontecesse...? Começava a se perguntar, quando se pegava entrando em pânico, às vezes, esquecia mesmo de rezar, então nada mais fazia, ficava horas muda, olhando a chuva cair e tentando se aquecer como podia. O céu ainda estava branco naquela madrugada chuvosa e feia. O frio invadiu a casa. O pequeno Mateus chorava baixinho. Ela trocou tanto o menino, e estava arrasada. As fraldinhas descartáveis estavam se acabando...
Com a chuva, seu cunhado, não tinha vindo, como de costume, trazer as compras e as coisinhas do Mateus. O celular estava sem cartão. A Sandra sua irmã mais velha, só queria ligar para dar bronca, sermão e ameaçar que ia tirar o Mateus...
Tanto frio. Tanta chuva. Há muito tempo, meses, Léia, não se via tão deprimida. Lembrou-se do irmão. Pássaro preso, condenado, não podia ver os filhos, não podia ver a família. Revirou-se no meio de suas cobertas e fingiu que não escutava os resmungos do menino.
Amanheceu a chuva parou. Olhou a rua, vazia, tranqüila. Estava com Mateus no colo,
Tentando acalmá-lo quando escutou alguém chamar: - É aqui que mora? Leia, correu a atender, sem esperar o homem terminar a frase. Olhou para a figura do pobre a sua frente e esqueceu-se de seus problemas. Bem alto, magro, moreno, cabelo encaracolado, mas grudado na cabeça, os dentes apodrecidos, a roupa imunda, rasgada, se cobria com uma espécie de manta, cobertor, todo colorido, muito diferente. Trazia em uma das mãos uma vara comprida, como se fosse um bordão. Era um mendigo. Leia ficou com tanta pena do pobre homem. Que fez sinal para ele entrar. O homem sem jeito, acabou entrando na casa de Leia. Olhou ao redor, notou as paredes ensopadas, o teto quase desabando, mas nada falou. Léia lhe perguntou: - O senhor vem de onde? Traz alguma notícia para mim? Como conseguiu chegar até aqui? Os homens da boca não barraram sua entrada? O mendigo respondeu sorrindo mostrando a miséria em seus dentes podres: - Eu vim do mundo. Os homens da boca, se algum dia foram homens, já se foram. Quando passei tinha uma pequena multidão, ali na entrada da rua, amontoada, assustada. Tinham três ou quatro deitados no chão, apagados, cobertos com um plástico preto. Nem notaram minha passagem.
Léia ficou arrepiada, até a espinha. Os homens da boca apagados. Significava que o outro lado estava ganhando território. E o mendigo continuou: - Não se assuste, não. Foi mesmo a polícia, que assoprou. Léia ofereceu-lhe café quentinho, ele bebeu tudo. E pediu mais. Léia lhe deu. Ele falou, falou, falou. Léia escutava, mas não estava mais ali. Seu espírito vagava em outro lugar. O mendigo com sua conversa narrou-lhe fatos do dia-a-dia de suas andanças e misérias. Ela viajou com a narrativa. Ele se encantou, pois alguém lhe deu atenção, e uma xícara de café quente. Depois foi embora, agradecendo com bênçãos e palavras de bondade que ela não escutava há tanto tempo. Ao sair, os farelos do pequeno pão que Léia lhe dera com a xícara de café se esparramaram pelo chão, junto com os farelos do pão, Léia notou algumas sementes. Assustada, pegou logo a vassoura e varreu para a rua, os farelos e as sementes, com medo que fosse alguma coisa desconhecida...
Alguns dias depois, o sol surgiu belo e radiante. As águas do rio começaram a baixar. Léia recebeu a visita do cunhado e da irmã. Trouxeram compras, coisinhas para Mateus, e também uma novidade. O irmão Dinho, já tinha data marcada para a liberdade. Ficou muito feliz. E jurou a si mesma, que iria lutar para ajudar seu irmão. O tempo foi se passando e Léia soube pelos vizinhos que o terreno onde morava ia ser doado pela prefeitura. Passou a ficar ligada nos comentários.
Uma tarde, Léia se viu desesperada e quase morreu de susto, A polícia estava batendo, não tinha como impedir que eles entrassem, revirassem toda sua casa, nos pequenos detalhes. Tudo, tudo foi revirado. As pequenas gavetas do armário de Mateus, seus sacos de roupa, até seus mantimentos, jogados ao chão. Uma vizinha que conhecia Léia, desde muito, e sabia de toda a sua história, telefonou para o pai adotivo de Léia, que veio rapidamente. Quando o pai de Léia chegou à polícia já tinha ido embora, mas a narrativa da filha deixou o pai muito chocado. Jamais esperava que acontecesse aquilo com sua pobre filha. Ela tinha sido espancada, e “convidada” a ir com eles no carro. Ela
não foi, pois sabia que se lá entrasse não voltaria. Dera sorte de não ter sido levada. Apesar de nada ter feito de errado, morava em um local muito freqüentado por todo o tipo de pessoas. Não era de estranhar a “batida” da polícia. Neste dia deu sorte, pois Mateus estava com os padrinhos, a irmã e o cunhado de Léia.
O tempo foi passando, depois daquela tarde, Léia, resolveu fazer alguma coisa por si mesma. Não queria acabar seus dias como seu irmão, o Dinho. Com o coração apertado levou Mateus para a casa de Sandra, e arrumou um trabalho, era difícil, chato, mas dava para ganhar algum dinheiro sem depender totalmente do cunhado, dos vizinhos. Vendia cachorro quente e salgadinhos, em um carro adaptado. Seu patrão lhe pagava por semana. Ficava de cinco da tarde, até meia-noite. Vinha para casa com medo, pois o inverno mal acabava. Uma manhã que se levantou e saiu para comprar pão, notou o caminho ao lado de sua casa coberto de flores, por todos os lados. Sem saber por que se lembrou do mendigo e das estranhas sementes que tinha varrido para fora de sua casa. Elas germinaram, cresceram e formaram um maravilhoso caminho de flores. Quando vinha voltando com o pão na mão, recordou as palavras do pobre homem. ”Amigo, não é simplesmente aquele que te acompanha, amigo é aquele que lhe abre a porta, e não lhe pede para sorrir, nem cantar e dançar, amigo é aquele que te recebe em sua miséria e pobreza, e não pede nada, apenas escuta o que tens para narrar”. Sentiu-se reconfortada, e deixou de sofrer tanto e lamentar, afinal o mendigo, uma espécie de poeta louco lhe deu o melhor presente de todos os tempos, as sementes da esperança, que se transformaram em flores e lhe mostraram que sempre podemos modificar nossas vidas, nossos caminhos, basta acreditar e ter muita bondade no coração.
Publicado no Recanto das Letras
Aradia Rhianon
(definição de amigo - extraída em parte do livro "Cidadela - Antoine de Saint Exúpery"