Café

Seguia por uma ruela qualquer, mantinha o MP4 no ouvido, o fio branco entrelaçava-se com o sobretudo ocre desbotado e velho que usara há quase três anos. Havia acabado de acordar, insistiu em não fitar o Big Ben no centro de Londres, as horas naquele momento não eram importantes. O par de tênis que usava era branco, mas, estava tão encardido que exibia um tom cinzento, quase oscilando com o branco impecável do meio-fio, definitivamente a mistura daquelas cores não ficaria legal.

Suas mãos estavam cobertas por uma luva de couro negra, seus olhos estavam pequenos e o frio o impedia de sequer dar uma bocejada, eis que começava a tocar Any time at all e a voz de John Lennon sempre o embalava positivamente. Os Beatles eram os reis para ele, vivia nos sebos da região onde morava angariando qualquer velharia que pudesse conter o quarteto de Liverpool. Chorava ao som dos Beatles e sorria junto deles.

Um passo em falso, o par de tênis de número 39 deslizou pela calçada e seu corpo pendeu para frente. Abriu a mão numa fração de segundos e fixou-se no poste que havia a sua frente, por um triz ele não teria seu rosto todo ralado. Uma mão firme tocou-lhe o ombro esquerdo, um homem de estatura mediana, gordo, com uma barba branca rala olhou-o com curiosidade. — Está tudo bem, meu jovem? — o rapaz apenas assentiu com a cabeça e tornou a caminhar até o seu ponto final. A entrada da estação do metrô, onde havia uma conceituada cafeteria bem a direita. Adentrou o local como todas as manhãs, o café era a única coisa que o fazia acalmar. Sentou-se numa banqueta redonda e pousou os cotovelos sobre o balcão de madeira. O lugar estava vazio, concluiu que devia ser umas seis da manhã, porque aquela cafeteria nunca fica com pouca gente. Ele a frequentava desde que se entendia por gente, fazendo cultivar um dos inúmeros vicíos que tinha: a cafeína.

Dormia menos de quatro horas diárias por conta do vício e conseguiu uma olheira interminável por conta de suas aventuras noturnas. Tais aventuras consistiam em ler qualquer livro, de qualquer autor, com qualquer assunto no som ambiente dos Beatles. Cada livro era entoado por um disco e ele se imaginava num filme com direito a trilha sonora. O livro da vez era Madame Bovary numa pífia tradução para o idioma de Vossa Majestade. Apesar de já ter lido inúmeras obras de inúmeros autores, não fazia a mínima questão de exibir seu conhecimento para quem quer que fosse. Não era necessário.

Fez o pedido de sempre, um capuccino simples, mas, duplo. Talvez o capuccino servisse como retrato para sua personalidade. Uma simples xícara de café cremoso e fervendo era tão óbvio. Obviedade sempre fez parte da sua vida, afinal de contas, ele não era bonito, não era rico, não possuía nenhum dom especial e muitos não o toleravam pelo seu jeito de ser.

Ele era simples, mas, não se contentava com pouco. Desde criança ouvia a falecida mãe dizer que ele tinha os olhos maiores que a barriga. Que era esfomeado, que era hiperativo, que era curioso, coisas de um simples rapaz londrino.

Dois barulhos foram ouvidos quase que imediatamente: a xícara de louça negra, quente e pesada pousando sobre aquele balcão e o rangido da porta. Havia chegado mais alguém, mais um despreocupado com o frio, ou talvez mais um viciado em café.

— Bom dia. — Disse o forasteiro que sentava no banco ao lado do dele. Jefferson assentiu como de costume, fitando a fumaça espessa que o calor do café produzia, ou não era assim? Nunca fora bom em física mesmo, muito menos em química, será que uma coisa tinha haver com a outra?

Virou o rosto discretamente, o homem ao seu lado era magro, mas, tinha altura. Ombros largos e usava óculos como ele, mas, de um modelo mais atual. Trajava um casaco de couro num tom impecavelmente mogno, suas mãos eram grandes e com algumas veias à mostra, as unhas eram impecavelmente limpas e ele não parecia ter o péssimo hábito de roê-las.

Pediu um café preto sem açúcar, coisa que o jovem Jefferson nunca faria, nem no pior dia de sua vida. Ele sabia apreciar um café bem doce, com alguns outros elementos, que combinados faria qualquer néctar dos deuses virar mero suco de jiló.

O homem virou o rosto na direção dele e o jovem Stevens pode perceber que as pupilas estavam levemente dilatas e a expressão daquele invasor não era das mais agradáveis. — Noite dificil, hein amigo? — Estranho comportamento de Jefferson, o garçom fitou-o com certa curiosidade, afinal de contas era raro ouvir o timbre de voz rouca e grossa do rapaz. Ele quase nunca falava, principalmente se o receptor da mensagem for uma pessoa que ele acabou de conhecer. — Odeio meu trabalho. — Murmurou o invasor, que, ao receber sua pequena xícara de café fervente, levou-a guela abaixo com uma rapidez incalculável, aquele líquido negro conseguiria levantar um defunto da cova, se ingerido daquela maneira.

Jefferson permaneceu a fitar seu capuccino, levou a caneca de louça negra aos lábios rapidamente, o café estava fervendo, ainda não era o momento adequado. O ato de se ingerir uma bebida tão peculiar como o café o obrigava a ter paciência. Algo que foi dificil de ser adquirido. Paciência é algo que não pode ser ensinado por nenhum professor, em nenhum colégio ou universidade, paciência se adquire com o tempo. O apressado come cru e quente, era o que seu falecido avô dizia. Apertou o botão do MP4 mais uma vez, a música que começava era Help!

Tamborilava os dedos de acordo com a batida da música, eis que enfim ele criou coragem e segurou na asa da caneca, dando um gole razoável no capuccino que já não fervia tanto.

— Então você gosta dos Beatles? — Uma pergunta muito óbvia, se levasse em consideração a tatuagem que ele tinha na panturrilha com o rosto de John Lennon, mas, seu corpo estava completamente coberto e aquecido, como havia conseguido descobrir tal fanatismo? — Gosto. — Limitou-se a responder a pergunta sem nenhum teor extraordinário, não saberia o que viria depois. — Percebi. Sabe, eu não gosto muito de Help! Acho que eles tem músicas e álbuns melhores. — Como ele sabia que era justamente aquela música que ele ouvira segundos atrás? Não quis mais saber, aquilo estava ficando estranho e terrível para sua mente.

Tirou algumas moedas do bolso, bebericou o resto do Capuccino e saiu sem mais alardes, despedidas não eram mais bem vindas. Não para aquele estranho.

Leonel Cupertino
Enviado por Leonel Cupertino em 21/06/2010
Código do texto: T2332051
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