Nossa Casa Velha ... Que Não Era Nossa!
Nossa casa velha ... que não era nossa!
(conto publicado na I Antologia da AELN - Academia de Escritores do Litoral Norte Gaúcho - 2009 - Editora Secco)
Costuma-se dizer que boas lembranças povoam a nossa alma de uma forma terna. E boas lembranças tenho da “nossa casa velha ... que não era nossa!”.
Vivi toda a minha infância nessa casa, alugada por minha família.
Vez ou outra costumo me enveredar pelos seus cômodos, tentando recompor o clima que existia por lá. Os seus detalhes vão saltando na proporção em que localizo as nuances da sua construção.
A nossa casa velha localizava-se numa ladeira, à direita de quem sobe numa longa rua, que termina com uma linda vista de pastagens dispostas em largas colinas, atualmente cobertas por casas populares e uma grande pedreira.
A sua fachada contava com duas portas e duas janelas, simetricamente alinhadas por pares.
Era imensa e revestida por uma cor amarelo desbotado com aberturas marrons.
Com o passar do tempo essa casa foi ganhando uma fisionomia própria, configurando um mapa mental que me desperta com grande saudade.
Recordo-me dos seus pequenos detalhes e mistérios, que servem para aninhar-me naquele passado que tanta riqueza me deixou.
A nossa casa velha ficava rente à calçada e era composta por móveis antigos para a época atual, sendo um deles uma grande mesa quadrada num dos cantos da sala, enfeitada por um vaso de vidro com espadas de São Jorge. Penso que essa planta fez parte “viva” de toda a minha infância, não morrendo nem amarelando em qualquer época.
Havia um cômodo sem janelas e nele encontrava-se uma cristaleira antiga e uma cômoda que, juntas, faziam parte de um conjunto com a mesa da sala, típico daquela época. Um grande mistério, já que eu desconhecia o velho hábito da construção do “quarto para as donzelas”.
Afora o quarto de meus pais e o nosso quarto, havia um terceiro quarto, que tinha uma porta interna e outra que dava para a fachada da casa. Mais um mistério ...
A sala de jantar era grande e contava com duas janelas que se abriam para o pátio.
À esquerda da sala de jantar ficava a grande cozinha, enfeitada com ladrilhos de cor “bordô” contornados por filetes brancos, já desgastados pelo tempo e, num espaço providencial, um fogão à lenha.
O banheiro. Ah.... o banheiro era muito diferente. Contava com uma grande pia branca, piso de cimento queimado, vaso branco com “descarga de puxar” e um chuveiro à álcool. Sim! À álcool.
Estranho: o banheiro tinha uma porta para a cozinha e uma porta para o pátio. Mais um mistério ...
Nossa casa velha tinha, no pátio, uma cirterna - uma grande caixa construída com tijolos para alojar a água da chuva, e um galpãozinho, local que eu utilizava para dar precários acordes num violão e participar de brincadeiras “inventadas”.
Lagartos. Sim! Muitas vezes eu via lagartos passeando através das duas janelas da sala de jantar. Eles surgiam de um matagal onde, anos mais tarde eu, minha irmã e algumas amigas, construímos a nossa “bat-caverna”. Nela brincávamos todas as tardes com a determinação de que as visitas seriam limitadas – afinal, o local era “nosso”, foi por nós construído e as regras eram ditadas com muita disciplina.
No lado de fora da nossa casa velha tinha um abacateiro enorme, que abastecia a nossa família e toda a vizinhança e, mais adiante, uma pequena plantação de milho. Penso até hoje que aquela plantação se fez sozinha, pois não me lembro de ver qualquer pessoa plantando alguma coisa lá.
Foi em frente à nossa casa velha que aprendi, com maestria, a jogar “sapata”.
Foi lá que eu comecei a ver o “mundão” que estava por vir.
Foi lá que comecei a sonhar ... a pintar ... a participar de grupos de jovens, a saber que, se as telhas de uma casa não estiverem bem colocadas, há incidência de enormes goteiras. Ah ... quantas goteiras, quantas bacias eram espalhadas pela casa em dias de chuva.
Lá também conheci raposas, pois algumas delas habitavam o telhado e, muitas vezes, me acordavam com seus passeios noturnos.
Lá comecei a entender o tempo: um “cuco” soava e se balançava de meia em meia hora, despertando-me para as inúmeras atividades que a infância demandava.
Quantas atividades! Quanta energia!
De uma forma muito simples a nossa casa velha marcou a minha vida.
Nunca esqueci a sua estética, meio vampiresca, soturna, aparentemente fria, mas deliciosa na minha lembrança.
É interessante quando, mesmo depois de tantos anos, eu passe a observar com outros olhos os seus misteriosos recantos que eram cruzados despercebidamente, tendo a certeza de que a gente só curte o nosso lugar depois de estar andando por outras bandas ...
Saudades ...