Caixinha de Surpresas
Como milhares de meninos espalhados pelo país, ele sonhou com o futebol. Além da paixão pelo jogo, sabia que era a oportunidade que a vida lhe deu de vencer a pobreza e alcançar condição melhor para a sua família. Muito cedo, colocou nos ombros a responsabilidade de virar o jogo da vida, que impunha a sua casa “impiedosa goleada”. A comida era pouca, sem nenhum luxo, eram gratos pelo feijão com farinha que forrava o estômago e curava a dor de uma barriga vazia. Mesclando os biscates que rendiam alguns trocados, com os testes nos clubes, na esperança de que alguma porta se abrisse, ele ia levando a vida. A mãe era a sua grande motivação, sonhava em ganhar dinheiro com futebol e dar a ela uma casa como as que viam nas novelas.
Até que ele levava jeito, na verdade, tinha mais vontade do que jeito. Vontade que foi se esvaindo com o passar do tempo. Os anos foram avançando e nenhuma oportunidade de fato surgiu. Até que para sua surpresa, aos dezessete, alguém se interessou por ele e começou a treinar num clube de verdade. Por ali ficou, foram muitos jogos, diversos campeonatos, mas o dinheiro se resumia a uma pequena ajuda de custo que mal dava para o transporte – seis ônibus diariamente, três pra ir, três pra voltar. Pensou em desistir, se sentia um peso dentro da sua casa, mas, a mãe, sempre valente, com todas as suas forças fazia cada vez mais faxinas a fim de sustentar a família.
Aos dezenove, chegou a hora da verdade. Pensou que, enfim, se tornaria um profissional da bola, mas foi surpreendido quando viu seu nome na lista dos dispensados. O clube não tinha mais projeto para ele, e desse modo estava livre para procurar um novo caminho. A tristeza tomou conta, não sabia como falar pra mãe. “Tanto sacrifício pra nada”, pensou. Deprimido, viu o sonho de criança ir embora: não marcaria gols no Maracanã, não vestiria a camisa da seleção, não disputaria Copa do Mundo, não compraria a casa da novela para a sua mãe. Pela primeira vez na vida pensou em beber, mas a vaga lembrança do pai violento chegando bêbado em casa, quando ainda muito pequeno, não permitiu que decepcionasse mais ainda aquela que tudo fez por ele. O que fazer, senão encarar a dura realidade. Foi assim que, sem ofício definido, foi trabalhar como servente na construção civil. Vida dura, onde literalmente aprendeu o que é pegar no pesado. Segunda a sábado enfrentando o batente, e um pouco de alegria aos domingos, quando, no time do bairro, matava a fome de bola marcando os seus golaços.
Aos vinte, quando não esperava mais nada do mundo do futebol, mais uma vez foi surpreendido. Ao chegar em casa, depois de um dia de trabalho, lá estava a sua espera o antigo empresário. Trazia com ele uma proposta de levá-lo como profissional para jogar na Argélia. “Aonde, professor?” – perguntou, ainda incrédulo. Na sua simplicidade, nunca ouvira falar do país do norte da África. Dois mil dólares por mês, livre de todas as despesas. Pra quem ganhava salário mínimo, aquilo era um caminhão de dinheiro. A princípio, ficou com medo, afinal já ouvira tantas histórias tristes sobre meninos que foram para outros países atrás de um sonho e que se deram muito mal. Mas a mãe estava ali ao seu lado e passou-lhe toda a confiança que precisava para aceitar o desafio.
Tentou disfarçar as lágrimas, mas, ainda que fosse exímio driblador, era péssimo na arte de fingir. Beijou a mãe e os irmãos – passaporte e cartão de embarque nas mãos e lá foi ele em direção a um mundo desconhecido. Tudo era novo: uma língua que não entendia, comida exótica, religião tão diferente, costumes e cultura estranhos para o menino nascido e criado na favela. Nada parecido com o seu mundo, exceto a bola. Quando calçou as chuteiras e começou a jogar nos gramados de Argel, tão distantes dos campos de terra batida onde dera os primeiros chutes da sua vida, sentiu-se em casa. As chances apareceram e – com a imagem da mãe chorando no aeroporto enquanto lhe abençoava – ele não perdeu nenhuma delas. Firmou-se na profissão. Renovou contratos. Virou ídolo.
E a vida seguiu. Muitas conquistas, títulos e reconhecimento. Muito futebol como sempre sonhou. Foi juntando dinheiro e comprou a casa da novela para presentear a mãe. Mas, novamente para a sua surpresa, custou a acreditar quando, procurado pelas autoridades da Federação de Futebol da Argélia, recebeu a proposta de se naturalizar argelino, o motivo: jogar pela seleção daquele país. A seleção com a qual sonhara na infância era a brasileira, mas sentiu-se honrado com a proposta, e encarou o desafio. Deu tudo de si, lutou como nunca, e junto com os seus companheiros de seleção passaram pelas eliminatórias africanas. Mais uma surpresa: foi disputar a Copa do Mundo, sonho de criança.
Realmente o futebol é uma caixinha de surpresas. Tempos atrás a mãe voou para Argélia para conhecer a nora. Uma loirinha encantadora, filha de um alto funcionário da Embaixada Francesa em Argel. O casamento foi logo depois da Copa.
Fim