Personagens do Bixiga

Pode parecer que não tenho outro bairro paulistano para descrever senão o velho e bom Bixiga. É verdade. E minha vontade é a de transbordar as saudades com histórias e lembranças do chão que me viu nascer e onde cresci.

Poderia, sim, discorrer por outros lugares, contudo, seriam apenas rápidas nuances de minhas lembranças com ligeiras pinceladas de uma aquarela com estáticas paisagens. Sem demérito, é claro.

Já o Bixiga, é movimento em minha mente. É canção em minhas saudades e sonho em minhas lembranças e, como num álbum de fotografias, guardo estas nostalgias de películas em branco e preto, algumas já amareladas pelo tempo, registros estes que não posso emoldurar, pois são exclusivos do álbum de minha memória que por vezes, me propiciam um prazer onírico.

As ruas, casas, 'cortiços' e 'malocas', travessas e seus personagens. Personagens locais, 'famosos' em nossa intimidade bairrista ou do quarteirão em que viveram e que se destacaram por suas atividades em nossa vizinhança.

Quem, antigo morador do Bixiga, não se recorda da velha senhora por nome Marina, moradora na Rua Santo Antonio, em uma casa há alguns poucos metros da esquina da Treze de Maio? Era uma senhorinha obesa e paraplégica, que tinha como sustento a lavagem e 'engomagem' de roupas.

Sua casa era simples e pequena. Apenas uma porta e uma janela que dava para a rua, contudo oferecia calor e tranquilidade e por lá viveu desde seu mistér até seu falecimento. A mobília simples que completava o preenchimento do pequeno cômodo era constituída de uma cama 'patente', guarda-roupas, uma pequena cômoda com espelhos (já um pouco deteriorado) e a mesa de passar, constantemente forrada para sua lida. Ao seu lado, um velho rádio de válvulas para ouvir a Resenha da Ave Maria, do programa de Pedro Geraldo Costa. Mais acima, uma pequena lamparina para suas orações, iluminando a imagem de uma santinha de sua devoção. Havia também uma ou outra cadeira para que seus fregueses ou mesmo visitantes descansassem em suas chegadas.

Apenas passava as roupas com seu velho ferro de engomar que, quando apresentava algum defeito meu pai o consertava, assim quando também, algum 'pipôco' ocorria na velha instalação elétrica que ainda era encapada por tecido e corria linearmente pelas paredes até findar em uma tomada ou interruptor de luz.

Era daquelas passadeiras que engomava as brancas camisas sociais de seus fregueses com um polvilho que vinha em caixas do tamanho das de maizena e, quando aplicadas nos punhos e colarinhos ofereciam uma rigidez durante o uso, que conferiam elegância.

Muito ciosa, buscava sempre eliminar as mínimas imperfeições em suas passadas (ou engomadas, como queiram) e isto lhe conferiu uma enorme credibilidade em toda sua freguesia.

Algumas, poucas vezes, entreguei as roupas por ela aprontadas e pelo que recebia pude constatar que nunca foi 'careira' e, em função disto, sempre levou uma vida modesta.

Por ser paraplégica, portanto não caminhava e os poucos passos de suas necessidades eram difícieis e trabalhosos e requeriam sempre a ajuda de sua fiel 'escudeira' Eugênia, que exercia as funções de acompanhante, cozinheira, arrumadeira e era quem lavava as roupas da freguesia.

A fiel companheira de boas virtudes e fidelidade incontestável só tinha um pequeno desvio de conduta quando tomava umas 'branquinhas' e ficava um pouco 'alta' mas, nada que viesse a ser uma preocupação maior. Fumava 'Macedônia' e gostava de cantarolar alguns boleros e sambas-canções da época. Foi, também, uma excelente pessoa.

A casa simples de apenas um cômodo e cozinha, com um pequeno quintal ao fundo, onde também ficava o banheiro (coisa comum em muitas casas naquela época), contava com um pequeno jardim de plantas algumas medicinais.

Na esquina, funcionava o açougue do Chico (hoje é um espaço cultural de um artista de pagode) e o pequeno conjunto de casas avizinhadas fazia um pequeno triângulo, dividindo as moradias para as três famílias que lá habitaram.

Dona Marina avizinhava-se à sua direita com dona Julieta, mãe de Valquiri e suas irmãs (não me recordo de seus nomes) e à esquerda com Neuza (também filha de dona Julieta), professora de piano (tinha um tipo armário) e seu outro irmão Luiz Antonio ('negão' gente fina), que se esforçou nos estudos e passou a conhecer o mundo. Sempre, em suas viagens, nos mandava postais da Europa e dos lugares por onde estivesse. Tenho muitas saudades deles.

Eu ainda era um guri quando mantive contato com essas pessoas e na época havia um programa de televisão comandado por Jacinto Figueira Filho - 'O Homem do Sapato Branco' que atendia a população no prédio dos Diários Associados, na Sete de Abril.

Neste período, eu quis fazer uma surpresa para dona Marina e fui até o Jacinto, com o intuito de conseguir uma cadeira de rodas para ela, mas mesmo conseguindo falar com o Jacinto e com o monte de gente em suas necessidades também, o meu pedido foi protelado a uma próxima oportunidade, que não ocorreu devido ao falecimento da velha e boa senhorinha.

Passado o tempo de seu falecimento, Eugênia tomou as rédeas do ofício até pouco tempo depois, quando também faleceu.

A vida nunca será a mesma quando pessoas de nosso convívio familiar ou não, deixam a lacuna de suas ausências perpétuas e, foi assim que me sentí e sinto quando alguém com quem dividi o espaço da existência nos deixam à caminho da eternidade.

Hoje, são poucas as 'donas Marinas' em nossas vidas. E as que ainda restaram estão sendo substituídas pelas facilidades das modernas máquinas de lavar e pelos ferros de engomar de última geração além das bem aparelhas (algumas) lavanderias. Até os japoneses estão pendurando suas chuteiras nos cabides.

O Bixiga vive de sua atual história de liturgia cultural e gastronômica, conhecida mundo afora. As pessoas que fazem e fizeram a sua história, deixam suas marcas pessoais como registro único de romance e testemunho de amor e de saudades.