RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE

Naquela sexta feira de outubro, saímos da faculdade depois das oito da noite. Durante todo dia estivemos revisando o artigo, resumo de minha tese de doutorado para a publicação na Revista Science, a fim de engordar meu currículo que seria apreciado no Palácio do Itamarati para definição da embaixada onde eu iria servir. Pela minha cor e origem eu havia solicitado que a nomeação fosse para os países africanos onde eu seria bem mais útil que nos países europeus.

Passamos na casa de Marina para ela pegar a roupa da festa e fomos para minha casa que ficava a dois quarteirões do clube onde a atração principal daquela noite era Renato e seus Blue Caps.

Nós iríamos dançar embalados pela nostalgia dos anos 60 que meus pais tanto gostavam e que falavam com entusiasmo sobre a Jovem Guarda com todos os seus dinossauros, grande parte deles, ainda em atividade.

Estacionado em frente à minha casa um carro preto com os vidros fechados e motor ligado. Sem dar muita importância ao fato, entramos em casa. Meus pais estavam com visitas.

Um senhor de terno preto e cabelos grisalhos, um rapaz de terno cinza e cabelos em desalinho e uma jovem com vestido verde e cabelos louros presos num rabo de cavalo.

Todos se calaram quando entramos.

Cumprimentamos a todos, eu beijei meus pais e quando estava saindo para o quarto, minha mãe disse:

- Elias, esse senhor é seu pai e esses são seus meio irmãos...

Só então notei o mal estar, tridimensional, que estava no ambiente, normalmente tão acolhedor. O homem me estendeu a mão gelada dizendo:

- Sou o doutor Francisco e esses são Jonas e Maria...

Meio sem saber que atitude tomar, apertei aquela mão que mais parecia um molambo molhado e perguntei.

- Como meu pai? Que novidade é essa agora?

Minha mãe ia iniciar a falar, mas o doutor interrompeu dizendo...

- Sua mãe e eu nos conhecemos na cantina que seu avô tinha na faculdade vinte e oito anos atrás. Namoramos e desse namoro você nasceu.

- E só agora você soube disso?

- Eu prefiro que você me chame de doutor Francisco.

- Pois muito bem, doutor. Eu também exijo ser chamado doutor Elias, porque minha tese foi publicada na semana passada, mas o senhor não respondeu à minha pergunta.

- Eu soube do seu nascimento no mesmo dia e fui vê-lo, às escondidas, na maternidade...

- Como assim? Às escondidas?

- Meus pais jamais iriam aceitá-lo...

- Quer dizer então que o senhor fugiu de mim e de minha mãe por conta da pressão dos seus pais?

- Bem eu nem sequer falei a eles sobre você...

- O senhor nos abandonou porque quis...

- Não é bem assim. Escute Elias...

- Doutor Elias, por favor...

- Escute meu filho, digo doutor Elias, eu estava iniciando minha carreira diplomática, estava com a passagem e as credenciais do Itamarati nas mãos...

- Muito interessante essa coin... Continue por favor...

- Meus pais jamais admitiriam que eu vivesse com sua mãe, ignorante, pobre, semi-analfabeta e filha do negro dono da cantina da faculdade. Como eu poderia levá-la nessas condições para as embaixadas e consulados onde fosse trabalhar? Não. Eu não podia. Eu disse isso a sua mãe e ela entendeu perfeitamente e eu também espero que você compreenda a minha situação...

Agora a coisa é diferente...

Eu quero fazer seu reconhecimento, quero que você tenha meu nome na certidão de nascimento...

- O que eu entendo e vou lhe dizer agora, embora não acredite que o senhor, doutor Francisco, tenha capacidade para compreender é que o meu pai é esse homem aqui (e segurei nos ombros do meu pai afundado na cadeira de balanço) porque foi ele quem me deu um sobrenome;

foi ele quem ajudou minha mãe a me criar;

foi ele quem numa noite andou seis quilômetros comigo nos braços, ardendo em febre, atrás de socorro médico;

foi ele quem comprou todo material escolar que usei desde a pré escola e quem à noite contava histórias para eu dormir;

foi ele quem num dia das mães chegou com um pedaço sujo de cartolina azul e me ensinou a fazer aquele coração que está na moldura com a impressão de minha mão suja de carvão, para dar de presente a minha mãe porque o dinheiro do desempregado era para comprar comida e não coisas inúteis;

foi ele quem comprou a linha e me ajudou a preparar a rabiola para empinar o papagaio e quem me fez devolver todo conjunto ao legítimo dono quando soube que eu havia roubado o papagaio e que, por conta disso, me deu uma surra de cinturão para nunca mais eu roubar;

foi ele quem por causa dessa surra passou a noite toda chorando, sentado nos pés de minha cama, enquanto eu fingia que estava dormindo;

foi ele quem vendeu o carro, quando a vida ficou difícil outra vez, e pagou antecipadas, as quatro anuidades que faltavam para a conclusão do ensino médio no colégio das freiras onde eu estudava;

foi ele quem me deu esse anel de doutor quando terminei advocacia;

foi ele quem me criou, me deu um lar, pagou meus estudos me deu seu nome e sobrenome e somente ele eu quero para ser meu pai...

Não, doutor Francisco. Eu não quero mudar nada.

Eu não quero seu sobrenome, sua família e nem preciso de seu reconhecimento tardio...

Eu tenho pai, mãe e namorada e vou levá-los para o clube, onde vamos dançar numa festa dos anos 60, assim que o senhor fizer o favor de se retirar.

- E seus irmãos?

- Talvez um dia nos encontremos. Espero que eles sejam diferentes do senhor...

Com licença, eu tenho uma festa para ir...