Ele vai me matar
No balcão da Vara Criminal de violência contra a mulher ela chegou ofegante, os olhos distantes não paravam no lugar e as palavras não traziam lógica em si.
- Ele vai me matar.
Havia uma certeza naquela afirmação quase que sobrenatural, uma certeza sem necessidade de motivos, simplesmente certeza.
Enquanto aguardava o atendimento, não pude deixar de observar que aquela bela moça com traços indígenas e uma bela face - não esperava sua vez de ser atendida, o medo, ou melhor dizendo, o terror estampado nos olhos fazia com que perdesse a capacidade de organizar os pensamentos.
Era muito bonita, pele morena, boca carnuda, corpo esquio, e dentes salientes lhe davam um ar de flor do deserto, mas o terror que lhe movia os lábios dava a sensação de que toda aquela beleza era antes de tudo um fardo, como da rosa que não criara espinhos e se tornara uma presa fácil dos parasitas.
Vendo que a moça precisava antes de tudo de um ouvido me adiantei com o captador de sons que Deus me deu, e argumentei sobre o que se passava, ela, ofegante, com os olhos que se perdiam no horizonte além de minhas costas, respondeu:
- Ele vai me matar. Vai me matar.
- Quem vai te matar. Emendei.
- Meu marido, disse ela.
- Mas por quê? . Perguntei intrigado.
- Ele está preso, preso por estupro, tráfico e Lei Maria da Penha.
- Mas só pode ser por um motivo, você não sabe qual é?
- Acho que é tráfico. Está na prisão, e vai me matar quando sair. Se eu não tirar a queixa, ele vai me matar. Quero tirar a queixa contra ele.
Tudo isto foi dito com uma voz que parecia um eco distante, sem nenhum tom, como se algum som estranho tivesse saindo de sua boca sem sua vontade. Tudo o que queria era tirar a queixa, como se isto fosse a luz no fim do túnel.
- Mas e se ele estiver preso por outro motivo? Perguntei.
- Não sei , mas não quero ter nada a ver com isto, quero tirar a queixa. Disse a moça com voz tremula, como se já estivesse cansada de querer existir de fato, e simplesmente resignada com a sua sub-existência rastejante em torno do mundo real.
Intrigado, fitei-lhe as mãos e, para minha surpresa, ambas estavam com profundas marcas de queimaduras – provavelmente um histórico das agressões sofridas.
- Quero tirar a queixa. Repetiu, por fim, a moça pela enésima vez para a indiferente funcionária do balcão que parecia aguardar a hora do almoço.
Senti um nó na garganta, uma inquietação diante daquele quadro, tanto sofrimento e tanta resignação, uma vida parcialmente vivida, e um terror latente em seu espírito.
Senti raiva da justiça, e sobretudo da nossa cultura pobre e machista, covarde e impiedosa, que já se arraigou com tamanha legitimidade, digna de nota.
Fato lamentável.
Infelizmente o melhor a fazer seria aceitar a renúncia à queixa como melhor forma de preservar a vida da moça, ou seja, que o Estado saísse de cena para minimizar os estragos que estavam para ocorrer a qualquer momento.
Após este choque me retirei, sem me despedir - uma palavra poderia ser mais um confusão naquele mente conturbada e aterrorizada cujo discernimento já se perdera em alguma curva do pretérito.
Palavras com tom de horror, marcas pelo corpo, medo nos olhos, e, a certeza que o pior poderia acontecer a qualquer momento. Uma alma atormentada.
Frases de desespero ressoavam em minha mente, como ecos noturnos vindos de um profundo vale de desolação, e que, trazidos pelo vento do desespero, sobem contornando as duras montanhas da opressão e da impiedade.
Retirei-me pensando no quanto este mundo é tacitamente cruel, e como há pessoas tão belas, que vivem uma vida tão triste, que nem sequer sabem que o são, pois não conhecem outra forma de vida. Simplesmente querem estar vivas.
Justiça só de Deus, que tudo sabe e tudo vê.