Mercearia Paris... uma saudade!

Hoje é domingo e, apesar do pouco calor que faz, o dia não mostra a sua característica nordestina. Um sol meio que acanhado por entre as nuvens chuvosas que ameaçam a iminência de uma chuva a qualquer momento. Chuva fina, chuva de verão, apesar de estarmos às portas do inverno, mas para o sertanejo as quatro estações se resumem em apenas duas. Verão, quando o sol castiga em sua intermitência e inverno, quando as chuvas lavam a alma e irrigam a terra, preparando-a para o plantio.

Aqui em casa, e por ser domingo, as filhas e netas estão nos fazendo a costumeira visita, enchendo a casa de alegrias e muita bagunça na cozinha, onde cada uma quer mostrar seus dotes culinários e depois reunirmo-nos à mesa para saborear as iguarias por elas preparadas.

O almoço transcorre num clima festivo e, entre uma garfada e outra, as lembranças de suas infâncias emerge com os fatos e as traquinagens de cada uma delas. Vem, também, as lembranças de suas primeiras experiências profissionais em seus primeiros empregos com salário e responsabilidades.

Um primeiro emprego é como um primeiro amor, um primeiro beijo, fica marcado para sempre em nossas vidas e, com o passar do tempo, fica sempre uma doce e gostosa saudade de tudo o que vivemos naquela época.

Enquanto comia e ouvia o relato de cada uma em suas experiências, minha mente planava num vôo mais distante ao meu passado, em busca das lembranças do também meu, primeiro emprego.

Tinha eu meus nove anos de idade e já era um garoto de boa estatura quando comecei a trabalhar em meu primeiro emprego com salário fixo e responsabilidade na mercearia de meu saudoso 'tio' Jabra Chaebo.

De descendência síria/libanesa, o Jabra não era meu parente biológico e o que me deu esse parentesco foi o tratamento que me dispensava, tanto ele como sua esposa Karime, além da afetiva convivência que teve com minha família. Meu pai e minha mãe eram como irmãos em relação a ele.

A mercearia que ficava na Rua Santo Antonio, em frente à Rua Conselheiro Ramalho, era um pequeno comércio de secos e molhados, frutas e verduras, enlatados, enfim, de tudo um pouco havia, e a mim competia acompanhar e despachar os fregueses, auxiliando-os em suas compras. E quando as compras de algum freguês se avolumavam, eu as levava em uma ou duas sacolas de lona até suas residências.

Meu tio/patrão sempre foi uma pessoa de bom coração e muito bem quisto por todos do bairro, o que lhe garantiu uma freguesia fiel e o respeito da comunidade. Era um homem de postura altiva e imponente, mas carregava muita humildade dentro de si.

Nossa rotina começava às sete horas da manhã com a arrumação das mercadorias na porta da mercearia. Maçãs, laranjas, bananas, jacas (foi lá que tive o meu primeiro contato com esta fruta), melancias e outras frutas da estação ou nobres, eram acomodadas logo à entrada, para depois arrumar a sacaria dos cereais e outras miudezas internas.

Tomávamos o nosso café (média café com leite vindo do bar vizinho do Joaquim Frazão, português gente boa), com pão da padaria Pérola (esquina da Santo Antonio com a Major Diogo) e frios da própria mercearia. Era um banquete homérico todas as manhãs.

Terminado o desjejum, passamos à lida propriamente dita. Havia dias de pouco movimento e outros mais corridos. Esses eram nos dias de sextas-feiras e sábados ou nos finais e inícios dos meses quando o pagamento saía para muitos dos fregueses. Era também o dia de acertar as contas das famosas "cadernetas" de fiado e todo mundo pagava. Eram poucos os calotes. Naqueles tempos, os compromissos eram honrados e os poucos calotes eram liquidados depois de duas visitas à porta do devedor.

A rotina seguia sempre a mesma. Freguês chegando, entregas em domicílio (sempre com os sacolões de lona), o Álvaro da Farmácia (vide narrativa neste site) sempre "pongando" uma ou outra entrega de seus medicamentos para seus clientes, e assim íamos vencendo os dias, semanas e meses.

Eu estudava no período da tarde no G.E. Maria José (Manoel Dutra com a Treze de Maio), e, após o colégio, retornava para a mercearia e por lá ficava até a hora de encerrarmos o expediente, lá pelas oito e meia da noite e, na manhã seguinte, tudo novamente.

O Jabra era mais que um tio. Foi também meu tutor nas lições escolares e me abrigava a estudar sempre que me via na "folga" e, não satisfeito com as matérias escolares, me iniciou na língua inglesa e francesa (idiomas que "atropelo" muito bem) e que me deram ótimas notas nos estudos futuros.

Quanto ao meu salário, nunca soube quanto ganhava, pois minha mãe era a portadora "oficial" e mensal desta tarefa, mas as "caixinhas" dos fregueses, essas eram devidamente acumuladas em uma caixinha para no fim do mês serem a mim repassadas.

Quinzenalmente, íamos ao Mercado Municipal para abastecermos a mercearia. Era uma festa e uma alegria sem precedentes quando o velho caminhão Chevrolet Comercial de 1936 tomava o rumo do centro da cidade e depois adernava em direção ao Parque D. Pedro até o velho mercado. Ali, enquanto tio Jabra providenciava as aquisições necessárias, eu me perdia pelas alamedas internas e apinhadas da bancas e balcões com tudo o que fosse de gêneros alimentícios. E quando as compras eram finalizadas, voltávamos ao ponto de partida e agora para dolorosa função de descarregar as encomendas. Mas, tudo era rápido e, instantes depois, estávamos livre.

Passado algum tempo, e já cansado de um possível "sedentarismo" comercial varejista, tio Jabra acha por bem vender a mercearia. Contudo, a sua preocupação recaía em que seu comércio não fosse parar em mãos desconhecidas e assim, a velha Mercearia Paris passa para as mãos de seu irmão Chabo Chaebo, e eu junto com a transação.

Esse meu outro "tio" Chabo não era do ramo, mas manteve o controle da mercearia até certo tempo. Nesse ínterim, tio Jabra resolve ser representante comercial e passa a viajar pelos interiores de São Paulo, e numa dessas viagens algo triste e inevitável ocorre. Tio Jabra, teve uma síncope cardíaca e vem a falecer.

Não sei exatamente o mal que lhe acometeu e o levou à morte. O certo é que, para mim, foi uma dor muito grande a perca de alguém que atuou como um pai, amigo, bom patrão, professor e, principalmente, "tio".

Lembro-me de tia Karime, uma mulher de fibra fortíssima, bem destacada na família (era ela quem lia as cartas vindas do oriente e na característica grafia árabe) e que na época enviuvou com duas pequenas crianças.

Passado outro período e com a mercearia administrada pelo tio Chabo, novamente o comércio muda de mãos e desta feita para alguém que não da família. Tio Chabo não aguentou o "pique" do balcão e resolveu retornar para sua vida de caminhoneiro, fazendo as pazes com o velho "FNM" 1957 de porta "suicidas".

Eu, segui meu caminho em outras ocupações, concluindo meus estudos e buscando novos horizontes até chegar onde agora estou, numa mesa de almoço, de um domingo qualquer, ouvindo as filhas relatarem suas lembranças dos primeiros empregos, primeiros patrões, primeiros salários, primeiros colegas, primeiros amores... Em meu peito, batem sempre as primeiras saudades e com elas as primeiras das muitas lembranças de nossas vidas.

"Aláh, se apiede de nossas almas e nos contemple com Sua misericórdia, nos permitindo desfrutar de Suas Santas Promessas. Amém"