Feridas cicatrizam, mesmo?
 
Justina relevara traições do marido. Chorara demais, a cada nova paixonite dele. Sempre descobrira através de indícios que homens ignoram: fotos escondidas dentro de botas, roupas sumidas, marcas sutis de batom , cartões de hotéis agradecendo a preferência do Sr e Sra. Postreso. Lugares que Justina desconhecia. Relevara, contudo, guardara para si detalhes sórdidos.
Sr. Postreso, décadas após esses arroubos de homem que se via irresistível, mostrava-se marido fiel e dedicado. Muitas vezes, tentava entender raivas repentinas da mulher. Especialmente, quando mencionava  viagens, as quais Postreso chamava de “aquelas dos bons tempos”. Justina odiava tais comentários e silenciava, carrancuda. Tornara-se fria. Jamais iniciava qualquer aproximação mais íntima com o marido. E ele derretia-se, cada vez mais, por ela.
Num setembro, no dia do aniversário de casamento, Sr. Potreso voltou do trabalho mais cedo, abraçou a mulher com força, beijou-lhe a boca insensível e falou:
“Justina, meu amor, adivinha o que tenho aqui? Adivinha só? Duas passagens para Buenos Aires, com hotel Alvear e tudo a que tens direito! Assim, podemos reviver aqueles dias inesquecíveis...Lembras, amor?”
Justina livrou-se dos braços de polvo do marido, e soluços sacudiam seu corpo. Marido jurava que era pura felicidade. Trancou-se no quarto e sapateava sobre si mesma. Lavou o rosto. Retirou os valores do cofre e jogou-os em sua bolsa. Passou por Postreso e arrancou-lhe das mãos as passagens para sua liberdade tardia. Nem deu tempo de o homem perguntar-lhe qualquer coisa. Do sofá, Potreso ouviu o carro que tomava a estrada.
Agora, sim, pensava Justina, suas feridas iniciavam processo de cicatrização, enquanto o rádio tocava, volume máximo, um tango de Piazzola. Sabia que poderia conviver com as marcas das feridas. Lamentava ter fingido, por mais de vinte anos, haver esquecido mágoas com machucados tão infectados.  O curativo rompera, enchendo-o de secreção fétida. Abcesso, finalmente, viera a furo... Doera escutar, de viva voz, lembranças que não lhe pertenciam.
  Entretanto, libertara-se! E o tango era a música que a transportava a  um futuro novo.

História baseada em fatos reais.
Imagem: Google.

 

Ilram Rekrem
Enviado por Ilram Rekrem em 05/06/2010
Reeditado em 05/06/2010
Código do texto: T2301629
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