Aliteração de si.
Era mais uma noite fria. Suas mãos estavam frias, seus pés estavam frios. Sentia o corpo se arrepiar de leve com brisas suaves que insistiam em passa por baixo da porta do quarto. Mesmo de casaco, e cachecol de lã, ainda assim, não se sentia aquecida.
Além do frio, algo mais a perturbava. Sentia um incômodo, uma irritaçãozinha que não conseguia perceber de onde vinha. Era como um caquinho de vidro fincado na pele, sem conseguir ser localizado com exatidão.
Respirou fundo, na verdade quase bufou, algo como uma mistura de tédio, e agitação passavam por ela. Não conseguia se concentrar em algo por mais de 10 minutos sem literalmente cansar, entendiar-se de verdade. O som da tv a irritava, o carro passando na rua a irritava. Pessoas ao redor, e em contrapartida a solidão a irritavam. Tudo. Nada parecia estar certo, nem no lugar. Na verdade ela não se sentia em lugar algum. Praticamente uma peça de formato errado tentando se encaixar em algum espaço de formato mais bizarro ainda, algo como um daqueles brinquedos de criança com peças em formatos geométricos.
Se espreguiçou na cadeira. Em sua escrivaninha livros espalhados, uma coleção inteira, praticamente intocada. Mais tédio. Mais falta de vontade de sequer abri-los.
Ouvia música, uma das poucas coisas para a qual ainda reservava um pouco de calma, de paciência . Evanescence. Gostava das músicas, das letras, das melodias.
Observou as horas, ja passava da meia noite. Suspirou. No canto do quarto o violão dentro da capa, até pensou em pegá-lo, mas logo abandonou a idéia.
Parece que tudo havia caido num marasmo, como se tivesse aberto a porta de algum universo onde tudo estivesse em câmera lenta, ou então rápido demais, mas tudo desajustado. E ela só. Só olhava, só observava, só escutava. Só.
Tudo tão sem sentido. Não, não era uma depressão, nem frescura. Apenas sentia-se em suspensão. Automatismo? Também não. Não havia entrado na mecanicidade do cotidiano, seguindo o curso de olhos vendados, em uma esteira que a levava, junto a todos, para um lugar só. Estava consciente dessa alienação, e era isso que a perturbava. Porque não estava somente alheia, mas sabia que estava alheia. Tinha plena consciência disso.
Só restava a ela deixar as coisas correrem. Estava cansada, disso ela também tinha certeza. Cansaço físico, mental, e qualquer outra forma de cansaço que pudesse existir.
Seus estados de humor se alteravam, se pudessem vê-la como realmente estava... diriam: "digna de internação". Mas ela só estava se ajustando. Se ajustando através dos desajustes. Desajustes necessários, como diria um grande e querido amigo. E ela vinha aprendendo essa lição cada vez mais. Em cada momento desalinhado, aprendia mais, crescia mais. Em cada momento alinhado, centrava-se, como se uma preparação para um próximo estremecimento de suas bases.
Cada mudança do ponteiro do relógio parecia um martelar silencioso a ecoar pelo ambiente. E o relógio do computador, o único que ainda funcionava pela casa ja estava marcando perto da uma da manhã. Manhã.... onde ela acordava sem sequer parecer ter adormecido.
Nem notou, mas o frio diminuira, estava mais aquecida. Pensar nisso, havia ajudado a fazê-la se sentir um pouco menos alheia. Menos alheia à si mesma.
Estava entediada de novo, até de pensar nisso tudo. Lentamente abriu o zíper do casaco, e foi se despindo. Seu corpo nú mais uma vez se arrepiou. Desligou tudo, e foi para a cama. Cobriu-se com seu edredom, e se permitiu adormecer, e sonhar. Sonhar a fazia se sentir um pouco melhor. Na verdade aparentemente era o único lugar que nesses últimos dias lhe davam algo a sentir.
Adormeceu com um leve sorriso no rosto. De nada adiantaria ficar preocupada com os problemas, e pior, preocupada com a própria preocupação.
Embarcou para os sonhos. E então ja era de manhã.