Tudo começou com um copo de K-Suco
O Baleiro provavelmente não saiba, mas eu sei que tenho tomado muito suco Clight de saquinho, que vem a ser o mais próximo a água pura, que consigo engolir. Pêssego, laranja, maracujá, manga e uva, todavia nada parecido ao ki-suco da minha avó. Ou ainda ao seu poderoso chazinho de limão com bergamota, com o qual nos curava de resfriados em uma infância não tão longínqua quanto remota.
A cura se dava, ora movida pela espantosa fé da boa velha, ora a nível psicológico, pois bastava sentir seu cheirinho ou o carinho com que era feito, o que era na verdade a mesma coisa , para saber-nos completamente aptos a mais uma aventura de inverno trancafiados em um pequeno apartamento da rua Itaboraí, número 400.
A mais gostosa de todas foi sem dúvidas a do dia em que nós decapitamos seu Santo Antônio casamenteiro com uma bolinha de tênis. E disso, ela talvez até nos perdoasse. O problema do perdão não se ter consumado, acho que foi pelo fato de termos colado a cabeça do tal santo ao contrário. Só hoje compreendemos o quanto surrealista aquela imagem se tornou, mas mesmo que soubessemos disso na época, fazê-la percebê-lo seria maldade.
Engraçado e bonito mesmo é essa coisa de cheiro, como fica e dói, mesmo porque dói e fica, não tem jeito de esquecer, pois é ou se torna a própria existência que dela emana. Da minha, hoje tão breve vó Othília.
Um dia, na saída da primeira internação caminhávamos sob as árvores que faziam passagem do hospital até o carro (eu e meu irmão). Eram bergamoteiras em flor e simultaneamente ao passarmos pela segunda ou terceira, sentimos o perfume no ar. Olhamo-nos e molhamos os olhos ao nos olharmos. Que coisa! Justo naquele momento em que me carregava pela mão, pela vida.
Nada dissemos, nem foi preciso, sabíamos sem aviso prévio, que ela estava entre nós. Estava talvez entre as nossas mãos unidas, talvez fosse uma das bergamoteiras, ou ainda o próprio trajeto que percorríamos com nosso mais incrível e adorável fantasma brincalhão.
O mesmo que me curava dos males da vida e me mostrava que precisava não me deixar levar pela selva, onde por erro nascera. E me deixar claro que a loucura não era minha e sim daquela quase única maioria que insistia em me dizer fora de singular e equivocado contexto.
Hoje sei que a minoria, era a que tinha lucidez suficiente para perceber os profundos sentimentos dos homens, as cores das flores, o real tamanho de cada sonho.
E foi assim que se deu minha passagem pela vida, por onde ainda estou a passar, bebendo todo suco que posso, tendo comigo, mortos ou vivos, aqueles que me amaram, me amam e compreendem o porquê das minhas ausências, euforias, confusões e tímidos entorpecimentos em sonos profundos e lentos.
Vó Othília ainda mora no segundo andar de um verde edifício e sempre que posso estou por lá com ela, aguardando o retorno de uma gatinha pintada que foi passear e não voltou. A mesma que ainda hoje sobe e desce em uma sacola de crochê, por uma janela que permaneceu aberta pelo sempre, mesmo que alguns não podessem ver.
E de repente lá estamos as duas, eu as olho e as vejo firmes e fortes a esperar também por uma menina e sua escaleta. Seu rosto, sua música e suas razões, seu olhar tímido sempre a espiar para um oitavo andar como se de lá fosse descer por uma escada externa um menino tão lindo e nobre quanto o seu olhar.
Para não deixar sem fim a vida do outro menino, o eterno herói da menina foi descansar em frente a um lago denominado Paranoá. Lá montou uma barraca de idéias e ideais e junto a seu cão e seu violão faz ainda, vez em quando, algumas serenatas para a lua. Ele que não difere muito da menina de quem sempre cuidou sem proteger, talvez porque ele e somente ele saiba do tamanho da força que ela esconde dentro de suas histórias.
Será que entendes agora ? Que coisa é essa que me faz desencadear a vida? Tu estavas lá... Eu vi, eu sei. Um beijo triste e inofensivo, já se desculpando por existir. Pela tristeza que não podia, não devia, mas que agora está em mim. E que passa logo que amanhecer.
Eu:Tânia
Em:24/11/2009