Mãe, solta!
Eu deitei na rede, balancei-me um pouco e comecei a pensar no que faria no dia seguinte. Iria amanhecer domingo. Todo domingo só tem uma finalidade: praia e caranguejo. Um domingo sem nenhuma dessas coisas é um dia perdido. Ficar em casa e assistir a corrida estava fora de cogitação. Fazer comida, nem pensar. Eu precisava de alguma coisa para fazer e de alguém para me acompanhar.
Sabe, eu sempre achei o domingo um dia melancólico. Não sei se é porque as pessoas passam o dia com suas famílias e eu não tenho nenhuma ou se porque sempre fico sozinho. Ficar em casa, sentar no sofá e assistir a corrida só me mostraria o quanto eu sou só e às vezes faço questão de fugir dessa concepção. Talvez fosse melhor ficar acordado a noite toda. Quando todos estivessem acordando eu iria finalmente dormir, pelo menos assim eu ficaria isento de uma parte da manhã. Quando levantasse de tarde iria para um shopping assistir um filme, mas assistir filme sozinho é horrível, todos os casais felizes e cheios de saliva ao seu redor aproveitando o escurinho e você é o único que realmente sabe contar o que aconteceu no filme quando tudo chega ao fim, inclusive o filme. O pior é que em todo tipo de filme tem casais.
Sei lá, o teatro é aberto aos domingos? Certamente deve ter algum programa a um. Certamente que em todos os programas a um há dois pelo meio ou pelo fim.
Preciso arranjar uma namorada? Não. Minha mãe sempre me dizia que eu precisava arrumar uma namorada logo, eu ia ficar velho um dia e precisava de uma boa moça para me casar e ter filhos. Ela queria muito ser chamada de vovó. Ainda sinto muita saudade da minha mãe, das reclamações dela, do perfeccionismo que queria deixar o chão sempre brilhando, do tempero da comida, da luz que se acendia no meio da noite que eu precisava dormir. Talvez eu esteja precisando da minha mãe agora para me mandar dormir. Acho que vou visitá-la amanhã. Posso até levar umas flores, só não sei onde encontrar uma floricultura aberta no domingo. Se não encontrar um local decente que venda flores eu roubo algumas de uma lápide nova. Acho que não faria falta. Essas lápides novas vão receber flores durante o ano todo, depois apenas uma vez por ano, até chegar o dia em que ela estará sozinha, sem nenhuma companhia viva. Espero que muitas pessoas tenham morrido para serem enterradas amanhã, assim eu poderei até escolher as cores. Qual era mesmo a cor favorita da mãe? Acho que era azul ou seria rosa? Acho que era rosa, mulher sempre gosta de rosa. Não importa, afinal de contas ela já morreu e não vai nem poder dizer que não gostou. Ela é minha mãe, não acho que ela venha puxar meu pé durante a madrugada. Às vezes eu sonho com minha mãe puxando meu pé, mas eu sei que é só um sonho por isso eu dou um chute nela e mando-a voltar para o local de onde ela veio. Em quase todos os sonhos funciona e ela se aquieta, quando não funciona o sonho vira um pesadelo e eu acabo limpando o chão até ficar brilhando. Não sei, acho que não é saudável dedicar tanto tempo aos mortos. Queria que o sono viesse logo e que eu dormisse sem ter hora para acordar. Acho que vou levantar, já que não consigo fechar os olhos. Vamos ver o que há na geladeira. Água, pão, leite, uns ovos, poupa de fruta, manteiga. Acho que isso é o suficiente para fazer uma refeição no meio da noite. Imagino minha mãe me vendo uma hora dessas.
Ela diria: menino, o que você está fazendo? Hora de dormir.
Mas mãe, eu estou com fome.- Eu provavelmente responderia.
Menino, não tem mais nem menos. Passa para a rede. É hora de dormir. Eu já disse. Não me faça falar duas vezes.- Ela retrucaria enquanto eu sairia pela porta da cozinha cabisbaixo.
Antes eu pensava que não sentiria saudade. Ela passava a maior parte do tempo longe e eu não sentia falta. Eu poderia passar anos sem vê-la, mas sempre tinha a certeza de que ela estaria lá quando eu precisasse. Agora é tudo diferente. Eu sou um homem independente e sozinho que faz refeições no meio da noite. Eu não me orgulho de ter deixado que ela ficasse tanto tempo longe de mim, porque isso me deixou também longe dela. Mas não quero brigar com a vida. Tantas lembranças da minha mãe me tiraram o apetite. Todas as vezes em que ela me reprovou com aquele olhar controlador, todas as tarefas domésticas que eu fui obrigado a realizar, todas as festas que eu deixei de ir por punições que eu nem sabia a acusação. Tantas puxadas no pé. Solta meu pé mãe, solta! Eu já disse para solta. Não me faça falar duas vezes. Não quero chutar a senhora, mas se não tem outro jeito. Volta para o local de onde a senhora veio mãe e deixa-me dormir. Ta vendo, eu disse para me soltar. Quem avisa, bom filho é!