Aventura de uma Ciclista
Aventura de uma Ciclista
Tere Penhabe
Não havia espaço para o sonho, mas ele insistia em existir. Foi sempre assim com os meus sonhos de infância. E foram tantos...
Neste, meu coração disparava cada vez que eu pensava nele, e ao fechar os olhos, parecia-me poder sentir a brisa batendo no rosto, o cheiro característico das manhãs interioranas, exalando das cercas de Primavera, dos pés de flores vermelhas tão escandalosamente lindas, as famosas “sapateiras”, dos pés de manacá balançando suaves nos quintais, era bom demais imaginar tudo isso...
Para mim, era bem mais que uma bicicleta que eu queria, porque ela voava entre as nuvens, passeava entre as estrelas e de vez em quando, até atravessava o oceano, em busca daquela ilha perdida, onde estava um tesouro esperando por mim.
Era maravilhoso soltar as amarras da imaginação... gratificante acreditar no que me parecia tão distante, quase absurdo!
Na minha ingenuidade infantil eu não via empecilhos tão grandes, afinal.
Mas eu ia passando pelos anos, deixando para trás a ingenuidade e sendo lentamente contaminada pelo cepticismo, e cada dia a mais na minha vida, era uma possibilidade a menos de ver meu sonho realizado.
Fiquei moça, mas não desisti da minha bicicleta. Muitas vezes acordava sobressaltada no meio da noite, sonhando com ela, descendo ladeiras, saltando grandes valas e até mesmo rolando em ribanceiras com minha adorada bicicleta.
Papai Noel não era uma figura conhecida no meu lar doce lar, que nem era tão doce assim, afinal o açúcar tinha que ser economizado, para não colocar em risco o necessário café da manhã de todos os dias.
Entrava e saía ano, e ela nunca veio...
Finalmente eu me tornei uma mocinha, e novos sonhos se infiltraram nos meus anseios, a tal ponto, que já nem lembrava da minha tão sonhada bicicleta.
Eu me casei, mas como meu casamento foi relâmpago, porque durou só três meses, logo voltei para casa, porém já grávida, meus pensamentos estavam todos voltados para o meu bebê e tudo que ele viesse a sonhar um dia.
Cheguei a pensar que o meu sonho de ter uma bicicleta havia me abandonado.
Esperei ansiosamente minha filha nascer, tive problemas pós-parto, que me envolveram em preocupação, desgosto, depressão, só tendo olhos para aquele ser tão minúsculo e tão amado que estava ao meu lado e que eu não deixaria que o mundo ferisse tanto quanto havia me ferido.
Tudo o mais, eram devaneios do passado...
Mas a vida é como um rio, e se às vezes depara-se com obstáculos, também os vence ou contorna e vai em frente, e um dia a água volta a correr mansamente, sendo açoitada apenas pelos mergulhões famintos que buscam seus provimentos em aterrissagens mágicas e belas sobre o rio da vida.
Aprendi a cavalgar, e em oportunidades experimentava o doce acalanto da brisa cavalgando livremente pelos prados, o que fazia eu me sentir a dona do mundo!
Na época de natal, eu saía olhando vitrines, mas enquanto as moças da minha idade cobiçavam roupas e calçados, eu parava diante das bicicletas...punha a mão no guidão, e a emoção era tanta que parecia que eu estava tocando uma jóia caríssima. Mas ainda não dava pra ser...
Fiz concursos públicos e passei em vários.
Primeiro fui trabalhar numa cidade vizinha. Mas logo depois chamaram-me para trabalhar na Nossa Caixa, e eu voltei feliz para a minha cidade.
No meu primeiro pagamento, eu tive a nítida sensação de que tinha ganhado um prêmio da loteria, porque achei que ficaria rica em pouco tempo. Eu nunca vira tanto dinheiro em minha vida.
Sem nem pensar duas vezes, rumei para uma loja de eletrodomésticos que vendia bicicletas também, não me esqueci desse dia jamais, era na antiga e extinta, “Casa Alfredinho”. Escolhi cuidadosamente a minha tão sonhada bicicleta, uma monareta verde, porque não tinha vermelha, a minha cor preferida. Sugeriram que eu levasse uma grande, mas cadê coragem?
Eu não podia dizer a eles que não sabia andar, que aprender seria uma aventura perigosa naquela cidade cheia de ladeiras. E foi. Até hoje não sei como sobrevivi a essa aventura. Durante o dia, não foi possível... passei a acordar às quatro horas da madrugada, para sair pela rua enquanto ainda não havia ninguém.
Aprender a andar de bicicleta, foi a coisa mais difícil que eu fiz até hoje na minha vida. Ralei muito joelho, cotovelo, braços e pernas. Voltava pra casa chorando. o que proporcionava gostosas gargalhadas à minha mãe.
Mas não desisti, pelo contrário, cada dia mais eu me sentia estimulada, como se fosse uma verdadeira neurose. Até que algum filho de Deus avisou-me que eu não podia olhar para o chão, que ao sair com a bicicleta, eu tinha que fixar os olhos lá na frente, como se já soubesse andar, e... bingo! Era tudo que faltava, para eu deslizar suavemente com minha magrela pelas ruelas e avenidas da minha cidade.
A partir daquele dia, passei a pedalar rigorosamente 2 horas, todas as manhãs. Foi a melhor fase da minha vida.
Eu cortava as madrugadas em cima da minha bicicletinha, e aquele cheiro de flores e árvores que inundam as manhãs do interior, nunca me sairão da lembrança. Havia um espaço destinado a um órgão estadual denominado C.A.I.C., que era um bosque, na época meio isolado, mas muito breve foi incorporado à cidade, com o crescimento da mesma. Eu sempre ia até lá, apenas para me inebriar com o cheiro das árvores daquele bosque. Era delicioso, e jamais, em nenhum outro lugar que eu andei, encontrei odores semelhantes.
Esses momentos inesquecíveis, eu devo ao meu sonho infantil, porque sem a minha famigerada bicicletinha, eu jamais teria lembranças tão belas.
Itanhaém,06.05.2004
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