Premonição & ação

Geneviève escrevia em seu diário, em 25 de outubro de 1959:
“Hoje, mon amour deve estar em Florença. O lugar é um lugar de sonhos . Mon amour prometeu que me levaria, talvez, numa segunda lua-de-mel. Mas levantei com sensações estranhas, das quais tenho medo. Algo acontece... e em Florença. Sua última carta foi linda e apaixonada. No entanto... Sei lá... Arrepios e esse não sei quê de hoje me assustam. Batem e batem palavras para as quais quero manter ouvidos fechados. Tenho certeza de que o dia de hoje vai marcar minha vida. Como? Por quê? Gostaria de saber... Na verdade, não sei se quero ... O foco está nele e em algumas mulheres do grupo de estudo com o qual viajou. Escreveu que eram duas , muito feias e casadas. Não adianta: meus fricotes indicam coisas ruins ocorrendo.”
No dia seguinte, complementou:
“Ah, meu amigo, estou pior. Tive sonhos terríveis: fugia por trilhas com elementos reconhecíveis de nossos tempos de namoro, e, súbito, uma mulher baixinha, cabelos ruins, gordinha me empurrava precipício abaixo. Caia e caia, e o fundo inexistia. Estava lá, em queda livre, quando acordei aos pulos. Meu amigo, tão secreto, confidencio—só para ti, ninguém mais saberá disso, mesmo que seja realidade: a mulher existe e minha vida vai virar ao avesso. Tomara que, dessa vez, o dom haja falhado! ...Dificilmente.”
Ao final da semana—e faltava uma para o marido retornar—Geneviève, buscava tarefas: mãos ocupadas, cabeça livre de minhocas, martelavam palavras de seu pai. Lavou vidros; limpou lustres de cristal crivados de pingentes; lustrou móveis; esfregou, com escova de dentes velha, paredes e acessórios dos quatro banheiros; lavou e passou as cortinas de salas e quartos.
Nila, sua empregada há mais de cinco anos, observava as correrias da patroa. Quieta, elaborava hipóteses sobre o que a impelia a trabalhos que, normalmente, eram dela: só podia ser nervoso pela ausência do marido. Bem que tentara dissuadi-la desse empenho com limpações exageradas. Uma mulher linda, estudada, chique como Dona Gene, com escovinha de dentes, suando por causa de azulejos, piso , banheiras e patentes(era como Nila referia-se a vasos sanitários)! Que tinha gato ensacado, tinha, sim! E dos ladinos!
Em dez de novembro, véspera da chegada de seu marido, Geneviève, olhou a chuva envernizando os caminhos de cerâmica do jardim, no lusco-fusco de final de tarde. Sentada no largo peitoril da janela de seu gabinete, escreveu:
“ Amanhã, meu fiel companheiro, ele retorna. Tremo ao antever sua expressão, pois será diferente. O que lhe direi para não parecer uma idiota , derretida de saudade e amor? E a cara que faço? Dou-lhe um beijo frio? Sei que vai chegar e , logo, preparar-se para dormir, pois dirá que a viagem foi longa e muuuuiito cansativa. Queres apostar? Ah, como gostaria que o tempo parasse, agora, e o amanhã esquecesse de despertar. Minha vida vai mudar, porque pesadelos e sensações têm me contado quase tudo ... Estou já certa de coisas ocorridas lá longe... Que medo! Meu Deus, como devo agir?”
Acordou de sonos curtos e ferozes. Sentia sobre seu corpo peso de tormenta. Entretanto, colheu alguns verdes e flores, colocou-os no vaso da entrada. Tomou uma chuveirada. Vestiu-se. Engoliu café que estava na térmica. Passou batom. Acomodou-se no sofá, ao som de fugas de Bach. Nila chegara e varria folhas dos caminhos.
Hubertus abriu a porta e largou sua mala. Livrou-se do sobretudo e foi direto para o quarto, como quem tivesse urgência em usar o banheiro.
Invisível, Geneviève fica no vou-não vou atrás dele. Decide-se por Bach. Meia hora depois, caminha até o quarto: Hubertus dorme e ressona.  Leve, vai ao vestiário do casal e inicia a escolha de roupas. Coloca-as, dobradas, em um baú de couro. Retorna ao quarto. Senta-se no recamier, enquanto Bach abraça-a em suas fugas. Tenta ler Proust Em busca do tempo perdido. Hubertus acorda, sem beijo de Branca de Neve ou  Bela Adormecida. Geneviève vira páginas do tempo perdido. Olha para o homem, ali na sua cama, e lhe ordena:
Mon amour, já arrumei tua mala. Toma banho, ou faz o que quiseres, mas depois, R-U-A !!! E nem precisas inventar histórias que sei de tudo! Inclusive da mulher crespinha , casada e com medo de engravidar de ti! O golpe mais velho para pegar otários! Meu desinteresse, podes crer, é total.  Se quiseres falar comigo, no envelope, dentro do baú, está o cartão do advogado de minha família. Já saio do quarto. Irei, agora, respirar as Quatro Estações de Vivaldi. Por favor, vá embora sem barulho. Adieu!”

História baseada em fatos reais de relatos para pesquisa sobre o tema TRAIÇÃO realizada pela autora.
Imagem: Google

Ilram Rekrem
Enviado por Ilram Rekrem em 26/05/2010
Reeditado em 27/05/2010
Código do texto: T2280424
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