O "Solitário"

O 'homem de bem' é um cadáver mal informado. Não sabe que morreu."

Nelson Rodrigues ( 1912-1980 )

Ele tinha apenas 43 anos, mas aparentava muito mais.

Advogado sênior de um grande escritório tinha tudo que um homem poderia querer. Uma caminhonete invocadona e um carro do ano. Uma bela casa num bom bairro da cidade. Cartão de crédito ilimitado. Muita grana no banco. Sua residência equipada com tudo que havia de mais moderno. Trabalhava de quatro a seis horas por dia não nunca chegava ao escritório antes das dez da manhã. Já estava nesse lugar há 20 anos e todos os dias eram iguais: já aparecia de cara amarrada sem cumprimentar ninguém e enfurnava-se em seu gabinete distribuindo ordens e trabalho pesado para os funcionários e estagiário menos graduados. Apenas tinha uma comunicação razoável e profissional com sua secretária que já o acompanhava havia sete anos e era uma solteirona amarga e desagradável como ele. Não precisava de pessoas, ele mesmo dizia. Pessoas eram apenas instrumentos para se conseguir algo, também era uma idéia que resumia seus preceitos austeros. Nunca se envolvera seriamente com nenhuma mulher. Para ele as mulheres eram “interesseiras”, “desinteressantes”, “burras de doer”, “ nada confiáveis”, “não tinham importância” ou por fim que “não valia a pena o esforço”. Não que ele fosse homossexual. Longe disso. Era uma chauvinista daqueles que você tem vontade de bater quando abrem a boca. E não só com as mulheres. Se um dia resolvia dar sua opinião, saia de baixo. Você iria escutar muita merda. Merda seca de verdade.

Por toda a sua vida tinha escutado o que diziam seus pais, seus professores, o policial do módulo mais próximo, o padre da paróquia, o presidente da república escroto e os políticos safados em geral. Sempre afirmava em suas poucas conversas que “autoridades são boas e muito necessárias nessa sociedade marginais e selvagens ignorantes”. Mas, há muito tempo tinha perdido o hábito de conversar. Seus poucos prazeres eram a Gazeta do Povo, que lia diariamente, o café no trabalho, a cerveja depois do turno e os cigarros. De casa para o trampo e do trampo para casa. Essa era sua vida e para ele estava ótimo do jeito que estava. Nos finais de semana se dedicava a assistir futebol & tomar umas duas latas de Kaiser na porta da Padaria do Valtinho na esquina de onde morava. Cem passos no máximo. Pitava um cigarro tomando uma devagar. Fazia uma expressão facial calculada de “nem chegue perto de mim, sou um solitário & assim é minha vida e não se meta”. Só que – paradoxo dos paradoxos – era uma atitude forçada. Entenda isso que acabei de escrever como você quiser. Que dúvida. Apesar de vestir-se com roupas caras se vestia mal. Como se o armário tivesse caído sobre ele. Não durante a semana, pois sempre trajava ternos. Porém no casual do sábado e do domingo.

Desde a mais tenra infância tinha sido educado por seus pais – gente da dita “alta sociedade” – que o que importava na vida era a realização profissional independentemente dos meios e dos fins. Nunca tinha tido amigos íntimos nem quando criança e nem em tempo algum. Tinha estudado nos melhores colégios preparando-se apenas para passas no curso de direito em uma universidade pública. Não gostava de festas nem de bares, como sempre dizia. “Pura perda de tempo” era um de seus mantras preferidos. Tudo para ele que remetesse à diversão ou a indolência era coisa de gente que não prestava.

-Bando de inúteis, costumava sempre dizer para si mesmo, será que acham que vão viver para sempre do sal da terra?

Não tinha paciência alguma para escutar por ínfimos minutos o que próximo queria dizer. Sempre achava que os outros apenas “falavam bobagens sem sentido”. Claro que essa atitude o tornava amargo, mas nunca autocrítico. Aliás, autocrítica para ele poderia ser elevado à categoria de coisas de “hippies fedorentos e comunistas ou de mulherzinha metida à besta” ou simplesmente coisa de veado mesmo. Pura coisa de veado, em seu turvo modo de pensar. Não tinha um sorriso, um olhar, um muxoxo. Tudo para ele era calculado e “politicamente correto”. Defecava montes para a humanidade, em bom português, enquanto seu rabo delicado não estivesse a perigo.

No trabalho, então... Insuportável. Apenas tornava-se possível porque uma cambada de pobres diabos rotos, fodidos, desnorteados e mal remunerados acatavam suas ordens ríspidas e impossíveis. Não que fosse um excelente advogado. Muito pelo contrário. Era um protelador da marca maior. Apenas atravessava petições com termos jurídicos arcaicos e pomposos para ganhar mais prazos e assim continuar enrolando suas fontes de renda, cliente eu iria dizer, mas não é bem o termo. Utilizava apenas o que tinha aprendido com seu professores de faculdade e nos livros. Nunca tinha tido um idéia original e tinha ojeriza de quem tivesse uma. Uma vida maravilhosa como vocês todos já devem ter percebido. Tudo rotineiro e previsível. Até aquele maldito sábado de sol e frio.

Eram onze e meia da manhã. Doze graus. O outono tinha chegado com tudo à cidade e mostrava sua cara para quem quisesse ver. Ele tomava sua primeira latinha de cerveja do dia dentro da padaria. Fumava um cigarro. A mesma marca de quando começou no segundo ano da universidade. O movimento estava fraco naquele dia. Apenas um casal comia um misto quente com maionese e tomavam um leite com chocolate. Duas senhoras de seus setenta anos compravam o pão de cada dia. Ele olhava para todos com seu melhor esgar de nojo, mas ninguém parecia perceber. Vestia uma jaqueta preta cara, calças jeans convencionais caríssimas e um tênis da moda que custava uns três meses de salários de qualquer trabalhador braçal. Estava fazendo sua melhor pose de “solitário” parado ali, bem no meio do estabelecimento. Ninguém parecia mesmo ter notado sequer sua presença apesar de ele ser um homem de seu metro e oitenta e poucos. Soltava grandes baforadas e degustava a cerveja. Até que entrou aquela figura.

Um cabeludo entre os trinta e muitos ou os quarenta e poucos chegou à atendente do balcão e vez seu pedido com um sorriso no rosto. Seus dentes eram meio amarelados em virtude da nicotina do THC que ele consumia. Os cabelos desciam enracolados pelo meio das costas, usava pequenas argolas de prata em suas orelhas furadas. Uma tatuagem perto do polegar da mão direita. Vestia uma jaqueta de couro estilosa, uma calça de veludo cotelê preta meio surrada e um tênis preto de cano alto. No dedo anular da mão esquerda um anel em forma de serpente. Ele notou que o cabeludo era bem simpático e que a moça do balcão o conhecia e o chamou pelo primeiro nome. A camiseta preta em seu peito anunciava: “Mötorhead”. Ele nem imaginava o que isso poderia ser e é óbvio que em sua mente passou que de repente isso era coisa de satanista. Tinham lhe ensinado desde sempre que esse negócio de rock era coisa “de maconheiro” ou “do Satanás”.

“Homem de brinco” pensou. “Se fosse em outros tempos teria as orelhas arrancadas”. “Essa juventude de hoje em dia...” ia conjecturando quando reparou na barba rala do cara e das costeletas começando a branquear. Apesar de o cabeludo estar de óculos escuros estilo de aviador suas sobrancelhas que tinham uma marca profunda que poderia ter sido esculpida por um soco inglês ou um pequeno canivete. Via-se sabedoria e conhecimento nelas. Ele nem soube como uma coisa dessas passou pela sua cabeça. Deu outro gole da cerveja e tragou seu cigarro com força soltado um belo halo de fumaça pelas narinas. O cabeludo chegou até o caixa, pediu uma carteira de cigarros de filtro amarelo e pagou sua conta, recendo seu troco que colocou no bolso traseiro direito da calça. Sua sacola continha duas garrafas verdes de meio litro de cerveja holandesa, seis pães de água, um frango assado e um litro de chá mate gelado. Deveria ser para curar a ressaca da noite anterior. O Cabelo pegou seus embrulhos e quase esbarrou nele parado ali no meio feito um dois de paus. O cara também tinha seu metro e oitenta e mais alguns centímetros que ele e tinha aparência de quem era bom de briga.

- Esses malditos solitários filhos de umas putas arrombadas – disse o cabeludo em bom tom – ficam sempre na merda do meu caminho, caralho! Porque eles não vão à merda com seus empregos bem remunerados e suas caras e bocas cheias de si e de vento! Merda, sempre tem um idiota em volta. A gente nunca consegue ficar só. Que vida escrota eu vivo! E saiu resoluto com seus pacotes num passo firme, porém com uma ginga de rua que lhe era característica. O turbilhão estava armado. O cara sabia praguejar e xingar e ofender as pessoas como ninguém. Talvez uma vida toda de orfandade precoce, loucuras, bebedeiras, brigas de bar, mulheres malucas que atiravam coisas nele depois da primeira trepada e do quinto uísque, cadeia, subempregos & péssimos empregos, um pouco de literatura da pesada e música num volume alto suficiente para ensurdecer seu vizinho do quarto andar, drogas, e coisas deste tipo poderiam ser a causa daquela boca suja. O cabeludo atravessou a rua e seguiu seu caminho e ele não viu para onde.

Terminou a lata que estava tomando e pegou outra no refrigerador da padaria. A segunda do dia. Não chegou a completar o trago. A cerveja desceu rasgando pelo seu esôfago e bateu diretamente no seu estômago causando um efeito mais devastador que uma bomba nuclear. Parecia que sua cabeça, naquela exato instante tinha sido colocada para funcionar.

Uma vida inteira desperdiçada, ele pensou. Uma vida inteira jogada na latrina por ter escutado todos os absurdos que essas ditas “autoridades” tinham lhe incutido e sedimentado em seu pobre cérebro. As mesmas idéias conservadoras e preconceituosas até aquele momento davam rumo a sua vida, arruinadas por meia dúzia de palavras sujas proferidas por um vagabundo de rua que com certeza estava numa ressaca de cerveja morna e vodca smirnoff. Como foi mesmo que o cara tinha dito? “Sempre tem um idiota em volta”. Aquilo parecia sob medida naquele minuto. “Sempre tem um idiota em volta”. Parecia um disco de vinil riscado em sua cabeça. “Sempre tem um idiota em volta”, “Sempre tem um idiota em volta”, “Sempre tem um idiota em volta”, “Sempre tem um... idiota em volta”....e isso agora não parava mais. Parecia o correr de um rio. “Sempre tem um...idiota em volta”.Numa fração de segundos parecia que a ficha daqueles quarenta e três anos tinha caído. Ele sempre se cercara voluntariamente de idiotas. Desde que nascera! Seu pai um imbecil que quando voltava para casa no fim do dia só falava do “trabalho”. Sua mãe que sempre lhe vestiu à marinheira nos fins de semana para “passear no Barigui” ou no “Passeio Público”, o padre da paróquia que lhe pregava sermões nos domingos sobre os perigos do “Inferno de Satanás”. Sua professora do primário que era uma velha bruxa que tinha uma régua de madeira e que descia a mão nos “retardados” seus colegas de classe. Dos seus avós que sempre mediam os outros pelo dinheiro e posses que tinham. O policial que ele conhecia de vista do mesmo café próximo ao seu escritório que sempre dizia que “maconheiro é bandido e tem que ser morto”, do dono do escritório que cagava regras e que na verdade, transformava sua vida em uma câmara de tortura e lhe tolhia todas suas liberdades individuais em troca de lucro. Seus conceitos e preconceitos firmemente enraizados. Nunca tinha perdido seu tempo em conhecer profundamente uma bela mulher. “Tempo é dinheiro” – seu mantra preferido – naquele momento estranho parecia uma baboseira atroz. Nunca tinha perdido seu precioso tempo tentando conhecer uma pessoa e com ela cultivar uma amizade duradoura. Sempre debruçado em compêndios para que pudesse sempre “planejar seu futuro”. Noites e noites de sono perdidas para deslindar processos não tão espinhosos. Sua diversão era apenas as coisas que estivessem sobre seu pleno controle. Nunca tinha se dado ao luxo de fazer uma loucura adolescentes como “puxar um carro para dar umas bandas” ou se meter numa briga de bar só para ir em cana por pura curtição. Nunca tinha tido um relacionamento maduro, adulto, ou não com mulher nenhuma. Sempre tinha pagado pelo sexo e achava que isso era bom demais e que não demandava de tempo algum, que também era uma questão de dinheiro. Nunca tinha tido uma noitada romântico e sempre tinha considerado isso uma bobagem inatingível. Sempre tudo tinha sido calculado e planejado. Até escutar o que aquele cabeludo drogado e alcoólatra havia dito. Mas com todos os diabos – pensou – eu nunca dei a mínima para o que os outros poderiam falar ou achar. Porra nenhuma, novamente matutou em seguida – sempre ouvi o que os outros falavam.

Terminou sua segunda latinha e foi correndo para o seu “porto seguro”. Sua casa. Seguro? Uma ova. Meu rabo cheio de hemorróidas. Tinha sistema de segurança por toda a propriedade. Os ladrões estavam sempre à espreita. Afinal, ele sempre fora um “cidadão de bem”. Um “homem de bem”, “pagador de todos os tributos”, “cumpridor de todas as suas obrigações”, “eleitor consciente”. Ou não? Um rato de rua qualquer tinha provocado tamanho choque cultural em sua cabeça? Mas não pode ser! Nunca dei ouvidos aos outros? Sempre deu e sua vida é miserável por isso e foi exatamente você quem pediu, murmurava-lhe uma voz interior. Suas dúvidas transformavam-se nesse momento em grandiosas questões filosóficas. Sua vida realmente era mais que miserável. Era um mausoléu de desenganos e de egoísmo puro. Dentro de casa andava agora de um lado para o outro com uma fera dentro de uma jaula. Estava totalmente atarantado. Acendeu mais um cigarro que tragava vorazmente. Foi até o refrigerador, abriu e sacou mais uma latinha de cerveja. Tomou tudo de um só gole. Continuou fumando. Não consegui pensar no que aquele imbecil lhe dissera na padaria. Parecia um homem corajoso que tinha conquistado sua liberdade na base da bordoada, disse para si mesmo. Meu deus, ele estava tendo um pensamento original. Isso o apavorava. Uma pessoa que não se ligava em “valores” & “questões sociais”. Apena vivia sua vida de sua maneira. Será que ele um dia iria conseguir fazer isso. As palavras daquele estranho ecoavam agora por todo seu corpo. Ele tremia de frio e de desespero. Nem imaginava o que tinha desencadeado essas reações. Foi até o cofre na parede oculto por um móvel e girou a combinação. Dentro havia jóias da família, grandes notas de euros e de dólares, alguns papéis de ações e um revólver calibre. 38 niquelado que ele tinha comprado para sua defesa pessoal há alguns anos atrás. Segurou a arma na mão direita trêmula. Foi até a mesa da sala e numa folha branca com timbre do escritório de advocacia onde trabalhava e começou a escrever, escrever escrever...

Até que um estampido seco foi ouvido pela vizinhança. Ninguém deu muito bola porque afinal a violência estava por toda a parte e era uma coisa natural e inerente da nossa “sociedade de costume”, porém quatro dias depois a polícia foi chamada porque da casa do “solitário” exalava um odor muito ruim. Os milicentes chegaram acompanhados dos técnicos do Instituto Médico Legal para noticiar o suicídio dele. Um tiro na cabeça. Sangue o miolos espalhados pelas paredes e pelo teto. No bilhete final se lia centena de vezes a frase: “sempre tem um idiota em volta...”

Geraldo Topera
Enviado por Geraldo Topera em 25/05/2010
Código do texto: T2278360
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.