Clarice

Clarice se levantou. Era a primeira vez em anos que estava de fato sozinha. Não havia ninguém que pudesse lhe cobrar nada, não havia ninguém que pudesse brigar por coisas fora do lugar, ou por falta de roupa limpa...

Clarice sentiu no peito um enorme vazio, como se alguma coisa estivesse faltando dentro dela. Não conseguia entender bem, mas sentia falta de alguma coisa, que ainda não sabia o que era. Decidiu levantar da cama, fazer um café, lembrou-se que ela não toma café. Mas levantou-se assim mesmo e passou uma garafa de café. Colocou a mesa, mesmo estando só. Comeu uma fatia de queijo com pão francês, e de novo se sentiu triste. Ligou a TV, odiava ver aqueles programas chatos de fim de semana. Mas que remédio? Não havia mais nada a fazer. Cansou da TV, começou a ler um livro. Isso ajudou um pouco, mas logo os olhos reclamaram. Ela começou a pensar em tudo que estava sentindo falta.

Sentia falta de acordar, e ter quem tomasse café, mesmo que nunca ouvisse nem sequer um elogio. Sentia falta de ter com quem conversar, mesmo quando os assuntos eram tão diferentes, tão chatos. Sentia falta de sentar, e ficar em silêncio, mas não esse silêncio de solidão que tinha agora. Sentia falta de a noite ter alguém do lado, mesmo que só do lado, pra poder olhar dormir. Acordar e ver o rosto, sentir a presença, receber um beijo, um carinho, ou pelo menos um "bom dia".

Começou a conversar sozinha, a falar sobre o que aconteceu no dia anterior, e chorou ao perceber o quão boba parecia.

Clarice resolveu sair, mas pra onde? Se acostumou tanto a ficar no seu mundo, sua casa, suas coisas, onde ir? Resolveu só passear pelas ruas da cidade, mas essas ruas pareciam sem graça. Sentou-se em uma praça, encontrou uma senhora idosa, que puxou assunto. Mas o que ela tinha a dizer? Nada. Ficou assim mesmo, tentando se distrair com a nostalgia da companheira de solidão, que lembrava-se saudosa da antiga praça, dos antigos sonhos. Clarice pensou em seus sonhos. Quando criança, sonhava em ser tanta coisa, em ter tanta coisa, mas com o tempo, não lhe sobraram muitos sonhos. Hoje ela mal conseguia se lembrar desses sonhos. Talvés agora seu sonho seja apenas ter com quem dividir a vida, multiplicar as vitórias e amenizar as perdas. Telvés seu sonho seja uma vida comum, uma vida menos vazia.

Clarice tinha uma família linda, que a amava, mas isso era diferente. Ela não sentia falta de amor, sentia falta dos pequenos momentos guardados entre um acordar e um cair de noite, de duas xícaras na mesa, de um espreguiçar ao ver um filme, de um sorriso sem hora marcada, ao acaso. Das pequenas coisas que só se tem com o convívio cotidiano. Muitas coisas ela nem nunca teve, mas sua alma sente falta assim mesmo. Clarice sabe que embora muitos digam que a convivência acaba com o relacionamento, na verdade, a convivência é a razão de ser de todo relacionamento.

Clarice olhava aquela senhora, já nem ouvia o que ela dizia. Como devia ser triste envelhecer sozinha! Uma pequena lágrima escorreu em seu rosto. Ao ver que a senhora parou de falar, sorriu e despediu-se. Voltaria para casa. Mas não agora. Ainda tinha muita solidão atrás daquela porta...