DE CACHORRO E OVELHA... NEGRA
E receberam o diagnóstico: Airton estava com uma doença para a qual a medicina, no final dos anos 50, oferecia poucas esperanças de sobrevida. Ofélia abraçou-se ao marido e, assim, lavaram-se em lágrimas. Subitamente, secou os olhos, ajeitou sua roupa e falou:
” Olha, Airton, vida é esperança e já ouvi contarem milagres de recuperação, em casos bem piores do que o teu. Vamos fazer novenas para Santo Expedito e São José. Também pedirei que a Santinha fique mais tempo aqui em casa. Padre Rosa vai concordar, afinal foi ele quem batizou nossas filhas e somos participantes assíduos nas reuniões da igreja. Podes ter certeza, meu bem, vamos superar essa, com a graça de Deus!”
O marido não conseguia parar soluços e suspiros, porém, assim mesmo, esforçava-se para expressar sua revolta:
“Como vamos pagar os remédios, as injeções que vêm da América, hospital, exames? Como? E as transfusões que o doutor prescrevera? Como? Esses milagres custam caro, querida! Na minha idéia, é culpa. Culpa que tenho no cartório e devo pagar. A justiça divina…”
E lá se iam lágrimas e soluços fundos.
A mulher estava indignada com a falta de fé de Airton.
“Milagres existem, sim! Claro que existem, só que a gente tem que agir para que possam acontecer! E que culpa, que nada! És marido gentil, carinhoso, amante perfeito, pai presente e dedicado, homem trabalhador e honesto! Credo, se continuas a falar que isso que tens é castigo, acabas acreditando e, aí sim, não vais te curar! Deixa de lorota, meu amor! Repete comigo: Hei de ficar bom. Hei de ficar bom! HEI DE FICAR BOM!!!”
Repetiram, em coro, abraçados e de rostos colados, a espécie de mantra, até se acalmarem. Combinaram que as meninas não precisavam saber disso: interromperia alegrias doces da infância . Contariam apenas para os parentes e amigos mais do coração. Evitariam que a informação da doença vazasse e se espalhasse pela vila. E não pronunciariam, nunquinha, o nome da doença—dava azar.
Começou o tratamento. Diziam a quem perguntasse que Airton estava com acentuada anemia. Ofélia doava seu sangue, além da frequência permitida pelo médico, pois, naquela época, controle sobre isso—sem computadores—era praticamente inexistente.
A aparência de homem parecia melhorar a cada dia: rosto rosado, entusiasmo para trabalhar, roupas começavam , até, a ficar apertadas. Vibravam com sua recuperação. A cura deveria estar próxima. E as novenas e as visitas da Santinha repetiam-se.
Cada meio litro de sangue que recebia, restituía mais vigor ao marido. Ofélia esmerava-se nos pratos: bifes de filé mignon quase cru, fígado e feijão todos os dias; sobremesas ricas em nutrientes; sucos de frutas com beterraba e espinafre; vinho do Porto (com vários pregos e parafusos na garrafa, conforme lhe ensinara sua melhor amiga) com gemada. Enfim, Ofélia passava 24 horas às voltas com tentativas para devolver a saúde ao seu amado.
A enfermeira do banco de sangue alertava Ofélia que estava exagerando nas doações. Ao que retrucava  segura de que tinha sangue demais e que esse tipo AB era difícil de encontrar. Como ela e Airton tinham esse tipo raro de sangue, sentia-se muito feliz, e muito bem, cada vez que sabia que era seu o sangue a percorrer o corpo do marido. E assim foi durante cinco meses.
Ofélia cantarolava na cozinha uma canção antiga. As meninas estavam passando o longo feriado com os avós no sítio e Airton saíra cedinho para o trabalho. Deliciava-se nas flores do quintal. Roupas dançavam no varal. Escutou palmas no portãozinho da frente. Lá estava o chefe de seu marido com uma expressão estranha. Correu. Abriu a porta e gritou:
“ O que houve com o Airton? Aconteceu uma coisa com ele, não é?”
Seu Pasquale meneou a cabeça em um sim, e pediu que fosse com ele, no furgão da firma, até o Hospital de Caridade. Nem tirou o avental. O coração saía pela sua boca. Não  conseguia perguntar qualquer coisa a Seu Pasquale. Chegaram. Irmã Maria já a esperava ,na entrada.
Nada poderiam fazer: Airton dera entrada no hospital  sem vida. Dr. Kurt explicou que , por melhor que aparentasse, exteriormente, a doença tomara conta de seu corpo. Não sofrera: um aparente desmaio e , pronto.
A notícia espalhou-se pela vila. Como avisariam os pais de Airton e as meninas? Alguém teria que ir lá. Para ir e voltar, pois grande parte da estrada até o sítio era apenas para carretas, levariam quase dois dias. O médico argumentou que não poderiam esperar esse tempo para o funeral. A menos, claro, que o enviassem a Porto Alegre, no IML. Padre Rosa aconselhou que procedessem com os ritos normais e que todos estariam juntos na missa de sétimo dia: seria uma celebração especial para Airton.
Ninguém, na paróquia, dispunha, depois das despesas com o tratamento, de dinheiro para a alternativa desse envio a Porto Alegre, distante mais de 150 quilômetros de picadas e estradas. Ofélia mais parentes e amigos, finalmente, concordaram com o padre.
Seu irmão providenciou tudo. Faltava o traje para o falecido. Sua cunhada prontificou-se. Ofélia, no entanto, afirmou que escolher sua derradeira roupa era o mínimo que poderia fazer por seu eterno amor.
Seu Pasquale deixou-a em casa. Iria até a firma e voltaria para apanhá-la.
Estava tão desesperada que lhe secaram as lágrimas. Foi ao roupeiro dele. Abriu as portas e sentia aquele perfume ainda quente, ali, por entre as coisas de Airton. Pegou seu terno favorito. Ao examiná-lo, para ver se necessitava de uma escovada e de ferro elétrico, notou que os bolsos do paletó estavam volumosos. Meteu as mãos num deles: bilhetes, cartinhas, flores secas, fotos em cujo verso reconhecia a letra do falecido—cada uma com data (por sinal , quase sempre coincidindo com as das transfusões recebidas), local e “ Marivalda, paixão de minha vida” ou “Marivalda que me ensinou delícias”. Nem quis ler, ou ver, mais nada. Queimou tudo no fogão de lenha.
Pegou algumas roupas bonitas e colocou na mala. Tomou um banho de banheira, passou batom vermelho, separou um vestido floreado e vestiu-o. Colocou seus sapatos de salto bem alto. Fechou a casa. Apagou, com água, o fogão. Trancou a porta. Seu Pasquale a esperava no furgão.
“Por favor, leve-me à estação de trem. Depois me arranjo. Quero abraçar minhas meninas.”
O homem espantou-se, porém, dirigiu-se à estação de trem que ficava na cidade, a uns vinte quilômetros da vila. Parecia que começava a perceber que Ofélia descobrira as pulações de cerca de seu empregado. Ainda assim, arriscou:
“ E a roupa do Airton?”
“Pois que o enterrem pelado!”
“É, bem que o aconselhei… Mas cachorro que come ovelha, a senhora sabe como é…”, murmurou Seu Pasquale, com o olhar na estrada de barro.

Imagem:http://static.andaluciaimagen.com/Cão-pastor-e-ovelhas-30202.jpg
História baseada em fatos reais a partir de dados coletados em pesquisa sobre o tema "traição".




Ilram Rekrem
Enviado por Ilram Rekrem em 22/05/2010
Reeditado em 22/05/2010
Código do texto: T2272189
Copyright © 2010. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.