OS ANJOS EXISTEM...

ANJOS EXISTEM.

Agosto de 1978.

Eu havia saído da cadeia, após cumprir 30 dias de prisão, por ter agredido a um superior hierárquico, o Cabo Jorge, gay que me assediava descaradamente.

Eu havia ingressado nas fileiras da Força Aérea brasileira, cheio de idealismos patrióticos. Acreditava que de algum modo, poderia melhorar o meu país... que ilusão!

Quando percebi, estava sob o jugo de um regime ditatorial, onde a palavra mentirosa de um superior hierárquico, vale mais que mil verdades de um subordinado.

Eu tinha consciência de que aquela prisão de trinta dias, encerrara definitivamente as minhas chances de uma carreira militar.

As minhas chances eram nulas. Eu não consegui terminar os estudos e não tinha aprendido nenhuma profissão... eu não sabia nada!

O que fazer quando saísse do serviço militar?

Tinha sido vitima de uma propaganda enganosa... eu, assim como tantos outros jovens, acreditava que o serviço militar poderia oferecer-me uma oportunidade. A chance de aprender uma profissão... quanto engano! Em vez disso, usaram-me para varrer alamedas, limpar gramados, limpar banheiros e roçar mato. “Quem não tem padrinho, morre pagão!”

Chovia continuamente. Uma chuva fina e fria, que parecia penetrar até os ossos.

Tive a impressão de que até a natureza conspirava contra mim... “morrer numa noite daquelas, ninguém merece”

Eu estava decidido. Não havia mais nada a fazer, mais nada pelo que lutar. Tudo era definitivo em minha mente. Eu vi o futuro à minha frente... e não havia futuro! Olhei para cima para sentir a chuva tocar meu rosto. Senti como se lágrimas rolassem por minha faça. Então, um pensamento me ocorreu: “a natureza chora por mim...”

Senti um aperto no peito... parecia estar prestes a explodir. Sentia uma dor tão grande na alma, que nenhum remédio do mundo poderia curar.

Caminhei de vagar para o meu quarto, fechei a porta, apanhei o meu revólver, examinei a munição e encostei o cano na têmpora esquerda, pois sou canhoto. Fechei os olhos e uma voz interior disse: “Aperte logo o gatilho e acabe logo com isso!” Então, um turbilhão de lembranças invadiram a minha mente. “Ana Lúcia, doce Ana... jamais esquecerei aquele primeiro de maio...” Ana Lúcia foi a mulher mais doce que conheci. E para dizer a verdade, foi a única mulher que amei de verdade. Eu tinha planos de casar-me com ela, mas agora... “Martha... como ela mudou... quando a conheci, não passava de uma adolescente alta, feia e magrela... e hoje, transformou-se em uma exuberante mulher...” Martha foi a minha primeira namorada.

Pensei na minha mãe. Alguém com quem nunca tive afinidade. Sempre tive dúvidas se eu era realmente filho dela, ou se era adotivo. Por mais que eu me esforçasse, não conseguia lembrar-me de nenhum momento de ternura entre nós. E pensei também em meu pai. Homem íntegro, inteligente, um misto de rude e terno. Um pessimista nato. “os olhos azuis mais expressivos que conheci... de poucos amigos, mas amigo leal.” E a maldita voz interior se manifestou: “Não vais escrever um bilhete de despedida?” – Claro que não. Os bilhetes são para covardes! Servem apenas para fazer com que, os amigos e parentes se sintam culpados pela sua morte. Eu sou o único culpado do meu fracasso. E assumo todas as conseqüências dos meus atos...

“Preciso beber algo!” - Pensei

Coloquei o revólver em baixo do travesseiro e saí. Fui ao bar do Sr. Ivair, local que eu freqüentava desde a adolescência. Tinha a melhor mesa de sinuca do bairro. E o único lugar que vendia o refrigerante Mineirinho, que eu adorava.

Fiquei parado na porta do bar e percebi que apenas o Sr. Ivair estava. Parecia estar se preparando para fechar o bar. Entrei meio sem jeito e pedi um fogo paulista. O Sr. Ivair serviu-me uma dose caprichada, sem nada dizer. Parecia estar aborrecido com a minha presença.

Bebi até o ultimo gole e coloquei uma nota sobre o balcão. Saindo sem nada dizer.

Andei por alguns minutos pela chuva. Tive a impressão de estar lavando minha alma. Até que parei em frente a uma marquise. Onde havia um mendigo sentado. Fiquei parado em frente a ele. Era uma figura muito estranha. Eu nunca o havia visto antes ali. Ele tinha a pele clara, olhos azuis, cabelos louros e longos, uma barba também longa, vestia uma camisa de malha branca e muito suja, um short azul com listras laterais brancas e estava descalço.

Quando ele percebeu a minha presença, ergueu os olhos e sorriu. Notei que estava todo molhado pela chuva fria e perguntei: - Está tudo bem com você?

Ele sorriu novamente e disse: - Sim, comigo está tudo bem. Como podes ver, tenho tudo de que preciso. Sou livre, tenho uma vista esplêndida, ar fresco, chuva para lavar os meus pecados, posso ir onde quiser e posso fazer o que quiser. O único senão é que a comida é um tanto escassa, mas eu não reclamo, pois mantenho a forma...

Senti lágrimas rolarem pelas minhas faces. Fui caminhando lentamente sem me despedir. Sentia-me de tal forma envergonhado que faltava-me até mesmo o ar. Ergui os braços e agradeci ao criador pelo anjo que me enviara. Caminhei meio que sem rumo até chegar em casa. Onde tomei um bom banho e dormi o sono dos justos. Dormi como não o fazia há meses.

No dia seguinte, fui ao local onde havia encontrado o mendigo. Mas ele não estava lá. Perguntei por ele, mas ninguém o viu.

Hoje estou com 50 anos e tenho a certeza de que aquele foi um anjo, enviado para salvar a minha vida.

Naioton
Enviado por Naioton em 20/05/2010
Reeditado em 23/05/2010
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