CONSERTAM-SE GAITAS...E FOGÕES

A mulher ia contente: filhos felizes, casa própria, bom emprego, marido apaixonado. Quer dizer, até então parecia. Sua intuição feminina, porem, notava diferenças no comportamento dele que ninguém mais sentia. Havia alguma coisa. Só não conseguia por seu dedo no que andava meio torto.
Elogiavam o marido perfeito que tinha e, também, o casal lindo que formavam. Ele era gerente de vendas em empresa multinacional, enquanto ela possuía, com o irmão, uma firma de contabilidade, a alguns metros de sua casa.
O marido fazia viagens frequentes. Umas curtas, outras longas. A mulher fez uma planilha, no Excel, contabilizando idas e vindas do cônjuge, nesse último ano. Verificou os resultados, à noite, longe dos olhares do irmão. Colocou os dados em um gráfico de colunas e do tipo pizza.
Estava ali: havia a tendência de as viagens curtas ficarem cada vez mais longas, enquanto as longas permaneciam estáveis. Coletou dados das contas do celular do parceiro. Afinal tinha acesso a elas porque, como seu maridão tinha muitos compromissos, ela pagava as contas da casa , as quais lhe eram reembolsadas logo.
Arquivava tudo. Por isso foi fácil listar números, localidades, duração das chamadas. Usou, mais uma vez, um programa de seu escritório para analisar esses dados: um número de telefone, nos dois últimos meses, repetiu-se 103 vezes, num total de cinco horas, quarenta e sete minutos e cinquenta e dois segundos.
Encontrara o furo na disfarçada paixonite do companheiro. Tinha outra zinha no caminho, era certo. Os dados estavam ali, nas planilhas e gráficos. Silenciou.
Uma tarde, tropeçou em pedra do calçamento irregular da calçada, perto de casa. Um vizinho ajudou-a a levantar, amparou-a até sua porta. Entrou e a dor na perna esquerda aumentava. Corriam lágrimas de tantas estrelas que via a seu redor.
Sentou-se e ligou para seu cunhado  traumatologista. Logo, estava ali, a seu lado e, após demorado exame, foi direto quando afirmou que parecia haver mais de uma fratura. Precisava, urgentemente, ir para o hospital. Suspeitava que não escaparia de cirurgia.
“Liga para o Afonso, porque , apesar de não haver risco maior, é bom que esteja aqui. Ainda mais que tens diabetes”, disse-lhe o  traumato.
Alcançaram-lhe seu celular—telefone fixo, só no escritório—apertou o nome do marido. Esperou uns longos segundos, e uma voz feminina—mas nem tanto—atendeu:
“Oi! O Onso tá no banho. Dá pra ligá daqui mais uns tempo?”
A perna até parou de doer. Respondeu, imitando o tom e os erros da desconhecida—aliás já familiar em números, colunas e pedaços de pizza:
“ Nada, amor, só diz pro Onsinho que a Onsinha dele e mais os fiotinho tudo morrero, mais que num carece de ele vi prus enterro. Se ele teimá e vi, ele também vai morrê de tanta da paulera. Os parente tá tudo nas espreita. Buenas, mimosa, e gracias pelos recadinho que tu vai dá pra ele, nu e no banho mesmo! Temo falando sério. Ah, já preguemo uns tanto muito cartaz de ‘CONSERTAM-SE GAITA E FOGÃO’ espalhado pelos poste. Ele vai entendê. Até mais num ti vê!”
Foi para o hospital. A cirurgia foi simples e, em dois dias, estava em casa.
Quando perguntavam pelo Afonso, respondia:
”Coitado do Afonso, foi transferido, repentinamente, para a Região Centro Oeste. Se o conheço bem, deve, até, ter procurado onças, por lá. Adora esses grandes felinos! Coitado, agora nem pode voltar para casa tão cedo! Ai, que saudade que sentimos! Homem tão maravilhoso!”

Imagem: Google
P.S.: Baseado, como os dois contos anteriores, em fatos reais coletados em pesquisa sobre o tema "traição".

Ilram Rekrem
Enviado por Ilram Rekrem em 15/05/2010
Reeditado em 09/06/2010
Código do texto: T2258983
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