Dia da Mãe Joana

-- Mulher, adivinha só!? -- o marido recém-chegado do sagrado futebol da manhã de domingo fala pra Joana, que levanta os olhos do tanque e espera pela revelação.

-- Convidei minha mãe, minhas quatro irmã com os marido e os noivo e todos os sobrinho pra almoçar com nós aqui hoje, pra comemorar o dia das mãe! -- ele revela com um largo sorriso cheio de entusiasmo e contentamento.

-- Espero que você tenha encomendado almoço no bar do Wislim, porque aqui em casa não tem comida pra servir esse batalhão todo, não. -- diz ela, depois de suspirar desconsolada.

-- Ah, mulher, você sempre conseguiu fazer o milagre da multiplicação dos peixe, dos pão, da farinha, do feijão, do macarrão...

Ela começa a cantarolar:

-- Lerê lerê, lerererêrererê...

-- Além do mais, eu não posso mais pendurar nenhuma fatura no mercadinho. -- ele arremata num murmúrio mais pra si mesmo que pra ela.

Joana suspira, se arrasta até a cozinha e começa a abrir armários e potes e sacos, com cara de quem não confia na própria capacidade milagreira porque, como as faturas penduradas, tudo tem um limite.

Ainda assim consegue acochambrar um arroz de forno "au sobret" - enfiando tudo que tinha sobrado na geladeira e mais um pouco -, embromar um tutu anêmico, com mais farinha que feijão, e engambelar uma macarronada mais anêmica ainda, ao alho-quase-sem-óleo.

Enquanto cozinhava o banquete da multiplicação milagrosa, dava de mamar ao caçula, passava os uniformes dos mais velhos e do marido, que trabalhava como assitente de porteiro, dava uma guaribada no barraco e continuava catarolando distraída.

-- Lerê lerê, lerererêrererê...

Antes que pudesse tomar um banho, chegam os convidados. A sogra exigente mal chega, se instala no melhor lugar do sofá e ordena ao netinho que ligue a TV porque ela não pode perder o Gugu. As cunhadas metidas olham pra Joana de alto a baixo, torcendo o nariz e dizendo todas as variações sobre o tema "Nossa, como você tá derrubada, hein?". Os concunhados folgados vão logo abrindo a geladeira e gritando "Pô, rapá! Num tem breja gelada nessa espelunca aqui, não?". E os sobrinhos correm feito pit bulls mirins pela casa, gritando feito maritacas loucas e quebrando o máximo de coisas quebráveis e inquebráveis que encontram pelo caminho.

-- Ô, mulher! -- o marido chama -- Corre lá no bar do Wislim e dá um jeito de pendurar uma caixa de cerveja bem gelada. E vai ligeiro!

Ela vai. E no caminho, vai cantarolando como em transe.

-- Lerê lerê, lerererêrererê...

Quando volta, equilibrando a pesada caixa sobre a cabeça, encontra a turba toda já detonando o almoço. Olha desconsolada pro último bocadinho de tutu que restou num prato e pensa em se contentar com isso, mas a sogra, rápida como uma águia, puxa o prato depressa, enfia todo o bocado de uma vez na boca meio banguela e arremata espirrando tutu pra todo lado:

-- Tu tá cunzinhando cada vez pior, hein?... Por isso que o coitadim do meu fio Jékinson e os minino tá tudo magrim feito um palitim -- finaliza olhando penalizada pros rechonchudos netos e filho.

Lá por dentro da cabeça, a nora cansada, suada, em jejum e desconsolada, continua cantarolando.

-- Lerê lerê, lerererêrererê...

Mas nem se dá conta, por causa do barulho da TV no volume máximo, e da conversa gritada dos concunhados que só falam de futebol, e da gritaria dos sobrinhos pit bulls, e dos copos e pratos restantes se quebrando um a um, além do berro repentino que a sogra dá:

-- Ô, Jékinson, fio ingrato, cadê o meu presente, pô?!?

O filho dá um salto feito mola, com um sorriso bêbado e empanturrado escancarando a boca, corre até o fiat 147 e pega um monte de pacotes de presente no portamalas.

Joana, então, pensa que pelo menos vai ganhar algum presente pra compensar tanta trabalheira, tanto desaforo ouvido e o ronco na barriga vazia.

-- O primeiro presente é pra minha querida... -- Jékinson faz uma pausa pra aumentar o suspense -- ... MÃEZINHA!!!

O maior de todos os embrulhos é ofertado à velha, que, sem nem ao menos agradecer, vai rasgando o papel e jogando em volta, até se deparar com a caixa do micro-system último modelo, que toca MP3 até MP1000, grava DVD, reproduz blue-ray, caseia, chuleia e prega botão, pica, mói e tritura, gela, esquenta e torra, vai de 0 a 100 em um segundo... e a velha ingrata torce o nariz, dá uma fungada e diz que é uma lembrancinha à toa, que esperava mais, mas entende que o filho, aquele ingrato, não pôde dar nada melhor porque a inútil da mulher preguiçosa dele não sabe economizar, além de ser péssima dona de casa.

Joana, apesar de ofendida, cansada, suada e do jejum roncando na sua barriga, permanece calada enquanto espera receber o seu presente e cantarola lá no fundo da cabeça.

-- Lerê lerê, lerererêrererê...

Jékinson, todo sorridente, segue distribuindo os presentes: um notebook pra irmã mais velha, um ipad pra outra, um conjunto completo de maquiagem, perfumes, cremes, shampoos e sabonetes da Avon pra outra, e um DVD player portátil pra caçula. Todas torcem o nariz e, sem agradecer, ficam criticando os presentes, a casa do irmão, a mulher do irmão, os filhos do irmão, o cachorro do irmão... e nem reparam que os seus lindos filhinhos já estão destruindo criteriosamente todos os presentes recém-ganhados.

Joana, a criticada, cansada, suada e jejuada mulher do irmão, apenas fica olhando pro marido, ainda com esperança de ganhar o seu presente de dia das mães... Mas ele bate as mãos uma na outra, como quem acabou uma tarefa e limpa as ditas cujas, e convida os cunhados pra assistir o futebol.

Ela, então, vai tristemente retirando os cacos de louça da mesa e do chão em volta, tentando dar um jeito naquela zona de devastação que virou a sua casa, quando é interrompida pelo marido que grita acima da barulheira:

-- Ô, mulher! Vai lá no bar e traz outra caixa de cerveja. E dessa vez vê se traz mais gelada, pô!

Ela vai. Mas tem o cuidado de chamar discretamente os seus filhos pra irem com ela, pega as garrafas vazias e enche todas com querosene e gasolina e álcool, enfia em cada uma um pedaço de pano, tomando o cuidado de deixar um bocadinho pra fora, com o isqueiro acende e atira uma a uma pra dentro do barraco e em seguida sai caminhando com seus filhos todos em volta de si, enquanto continua cantarolando.

-- Lerê lerê, lerererêrererê...

Maria Iaci
Enviado por Maria Iaci em 10/05/2010
Reeditado em 11/09/2011
Código do texto: T2248108
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