Desandando...
Amanhecia. E a luz daquela manhã atravessava a velha janela de madeira do hotel, carcomida pelos cupins. Na penumbra, olhava minhas mãos mergulhadas na água, fria e imunda, da pia. Sem pestanejar, lancei aquele líquido turvo em meu rosto, secando-o, a seguir, com o pano mais próximo, igualmente sórdido. Suspirei, fundo.
Fazia muitos e muitos anos que não voltava à minha velha cidade, ao meu passado. Mas, depois de tantos descaminhos, chegara a hora. Já sentia saudade daquele aconchego tedioso, do qual fugira ainda adolescendo. Minhas andanças pelo mundo, tinham muito me amadurecido. Já era um homem, e como tal me comportaria a partir de agora. "Chega de me esconder...". Ao abrir a jenela, fui chicoteado pelo vento poluído e pela algazarra do centrão. A cidade crescera. "Como estará minha casinha?".
Já na calçada, apertei o passo. Estava a poucas quadras da "minha quadra". A medida que andava, a minha cabeça pulsava, lançando-me ao passado. Lembrei dos amigos de infância, de cada rostinho feliz. Das brincadeiras inocentes, dos sorrisos constantes, da música perene que ecoava em nossas pequenas almas. "Como eu era feliz, meu Deus!...". A cada nova esquina, uma chuvarada de lembranças, a maioria muito doce. Quando, finalmente, avistei a velha casa de alvenaria, o coração pareceu saltar do meu tórax. "Minha casinha!". Corri, como nunca havia feito antes, mesmo nos tempos de secundário. Corri, corri, como se fosse perder o bonde... Já havia perdido muitos bondes, afinal. E, sem fôlego, aos prantos, me escorei no "meu" portão enferrujado. As grades ainda eram verdes, inclusive pelo limo que nelas crescia. Paulatinamente, ergui meus olhos para o pátio, a casa. E o que vi me assustou... Meu antigo abrigo estava abandonado. A madeira caiada, caía. A janelas que restavam, balançavam à mercê da ventania que encetava. Não havia mais vida... Empurrei o pesado portão e adentrei naquele mundo, que já fora meu paraíso. Não havia mais portas. Na sala, apenas entulhos. Em um cantinho escuro, vislumbrei uma fotografia rota. Ao pegá-la, vi que era a minha imagem, infanto-juvenil, com um sorriso que nem o tempo apagou. "O que...". Meu quarto penava vazio. Busquei, então, o quarto dos meus pais, igualmente soturno. O vento, que adentrava pelas venezas, denunciou um livreto no chão. As folhas dançavam. Ao pegá-lo, senti as mãos úmidas. Li apenas uma página, a que se abriu sob meus olhos: "Meu fiho, te amo tanto".
Saí correndo daquele inferno confuso. A chuva já iria começar. Entrei no boteco mais próximo e sentei na mesa à janela. Oco, era como me sentia, naquele momento. O garçom veio me atender: "Vejo que o senhor se interessou pelas ruínas. Mas ninguém quer comprar aquela casa. Dizem que é assombrada pelo casal que ali morreu, de tristeza, depois que o filho sumiu no mundo". Como não respondi, largou o cardápio na mesa e se afastou. Na capa do "menu", em destaque: "O melhor amargo da cidade". Sinais...
E a chuva cai...