A MANÍACA DO CAFÉ
Hierarquia.
Do grego: Hierós (sagrado) Arkhé (poder). Poder sagrado.
- Olhem, meninas, essa disposição das cadeiras, como vocês as colocaram, ficou muito boa. Porém, de um ponto de vista gerencial, eu acho que a Judith (chefe imediata) ficaria melhor nesta posição...
A posição que a nossa chefa mor se referia, era a de uma mesa que oferecia uma visão mais abrangente do setor, com o intuito de vigilância ininterrupta das funcionárias.
Eu já estava cansada da função operária disfarçada de auxiliar de escritório, a linha de montagem do século XXI.
Minha cronometrada uma hora de almoço chegara, finalmente.
Colocava tristemente a comida dentro da boca com vontade de parar com tudo.
O que fazer? Parar, parar! Velocidade; eu em verdade, em verdade te odeio! Dizer não a tudo, sim! Dizer não, não!
Depois, vinha a vida e suas realidades de arroz e feijão para comprar, da conta de luz para saldar... Calava meus delírios enquanto enchia a boca de comida.
- Maria, você terminou aquela planilha?
Mas eu não estava interessada em planilhas.
Eu queria um olhar. Apenas um olhar e que nesse olhar viesse dito o quanto sou especial, o quanto o dono desse olhar me quer e me necessita, o quanto que ele faria de tudo por mim...
Alucinações em meio às planilhas!
Voltei do éter ao escritório, e lá estava a Judith.
Agora sentada à mesa mais centralizada. Além de sabermos que ela “mandava” ali e em nós, isso devia ficar bem saliente para que não esqueçamos o caráter sagrado do poder, a tal hierarquia.
Pensava comigo: Quem foi o idiota que disse que somos livres?
Certamente, foi algum burguês filho da puta que nunca precisou trabalhar na vida. Provavelmente era europeu. Alemão, francês, inglês...
Não é desses lugares que vem toda filosofia?
Liberdade?
Não me faça rir. Essa liberdade de pensar e rir, pelo menos essa, eu ainda possuo. Deixar este inferno para fazer o que gostaria de fazer, nem pensar. As contas para pagar gritam alto em meus ouvidos:
Não! Não!
E nesse meu estúpido trabalho, que não contribui efetivamente para nada, até para servir o cafezinho há uma hierarquia. Há o "roteiro hierárquico do café".
Foi assim que batizei todo o percurso que a “tiazinha do café” faz.
Percurso este rigorosamente hierárquico, respeitando uma ordem numérica estrita de posições de poder dentro da empresa.
Eu não conseguia terminar a planilha, pois não parava de divagar em minhas reflexões sobre o poder. Via que as chefes vestiam-se com demasiado apuro, elegância e opulência.
Ostentavam com sua indumentária e seus inúmeros badulaques a grande diferença que havia entre suas jóias e nossas calças jeans.
Tanta artificialidade para representar um poder pequeno e mesquinho, pensava eu reiteradamente. Ficava com enjoo ao ver suas caras e bocas, sua servidão fingida e sua gentileza dissimulada e patética.
Que teatro picaresco!
Sempre pensava assim dessas palhaças.
Enquanto eu pensava em todas essas coisas, sem tirar os dedos do teclado e os olhos do monitor do computador, finalmente consegui terminar a inútil planilha.
Imprimi a belezura e, por um lapso de funcionária relapsa, não salvei a danada.
"É fod"... Pensei sem abrir a boca.
Mas tudo bem, tinha uma cópia impressa em cima da mesa.
Eu já estava pronta para mostrar a obra prima para a minha imediata quando a “tiazinha do café” chegou à mesa que dizem ser minha.
Então, peguei um copão de café e comecei a tomar vagarosamente o líquido preto. Nisso, a pobre “tiazinha” ao ver uma barata passeando pela sala, assustou-se e involuntariamente deu um tapa em minha mão.
O leitor atento já deve antever o que aconteceu...
A “tiazinha” foi ameaçada de todas as formas possíveis e imagináveis sobre como seu emprego, a partir daquele momento, estava bem próximo de ser perdido.
A pobre mulher chorou muito e pediu pelo amor de Deus para que não a demitissem. Ela dizia que tinha filhos e toda aquela cantilena horrorosa e piegas de pobre que já conhecemos.
A autora da planilha, simplesmente, teve que ficar até às 23h30 no escritório fazendo outra planilha.
E de presente ganhou uma advertência por escrito da sua imediata para que prestasse atenção ao serviço e obedecesse a procedimentos extremamente triviais como o de salvar documentos.
Ganhei até um manualzinho de informática básica.
Antes de sair, observei bem a cadeira da imediata.
Ela era revestida por um pano vermelho escuro. A cadeira era alta e de boa qualidade...
Pensei, refleti, ponderei...
Nisso, tive um ímpeto fulminante e corri até a cozinha. Estava apenas eu e o segurança na empresa. Lá na cozinha havia garrafas e garrafas com sobras de café.
O segurança já dormia naquela hora e eu tinha que me vingar, de alguma maneira eu tinha que retribuir a maldade que recebi.
Eu e a coitada da tia do café.
Então peguei todas aquelas garrafas com aquele café frio, o que davam alguns bons litros. Derramei o líquido preto por cima de todas as mesas, toda a papelada, todo o arquivo e todos os computadores.
Joguei café na parede, no chão, no teto, nas janelas. Peguei também os pacotes de pó que encontrei e joguei por todo o escritório.
A planilha, agora pronta, fiz questão de afundar num pote de vidro cheio de café.
Junto à planilha mergulhada no café, também mergulhei o manual de informática.
Enfim, tudo naquele escritório estava banhado por café, embebido em café, com cor e aroma de café.
Sentei-me confortavelmente na cadeira da chefe, reclinei-me com lentidão, olhei o que havia feito...
Achei bom.
Dei um suspiro aliviado e fui fazer um café com o que sobrou de pó. Tomei o café vagarosamente.
Como eu havia feito uma garrafa cheia, despejei uma parte do conteúdo na cadeira hierárquica da minha imediata.
Mas ainda não estava satisfeita.
Peguei o pó de café que estava no chão, que parecia um monte de lodo, e comecei a escrever nas paredes com o dedo indicador:
Viva o café! Viva o café!
Escrevi em todos os lugares possíveis, bebi mais um pouco de café que sobrou, derramei mais um pouquinho num canto que ainda não estava tomado pelo café e, finalmente, fiquei exausta.
O cheiro do café já estava me causando náuseas.
De toda essa história, só me dói não ter estado lá no dia seguinte para ver a cara da chefia.
Hoje moro no interior e tenho uma barraca onde vendo bolos, salgados e café.
Passado na hora! Sempre bem fresquinho!