'Baianada Paulista'
Desde os meados do século passado, o êxodo nordestino foi bastante expressivo na capital bandeirante, com a chegada dos retirantes dos muitos estados da região norte e principalmente do nordeste brasileiro, com o sonho de, por aqui, encontrar o tão desejado “eldorado”. Fugidos das mazelas que o sertão agreste oferecia e, ainda oferece como a fome, a falta de emprego, educação e saúde, dentre outros.
Nas estações de trens e terminais rodoviários o frêmito ululante dos passos largos e rápidos dos chegantes com as suas poucas bagagens acondicionadas muitas vezes em perfeita desordem em velhas malas sertanejas, ou mesmo em pequenos alforjes e até em sacos de aniagens, repletos de suas poucas tralhas, mas carregados de esperanças.
Havia, também, os pontos clandestinos de desembarque daqueles que por aqui chegavam aos famosos “paus-de-arara”, que eram caminhões de carroceria de madeira, destes comuns de cargas, com tábuas transversais que serviam de bancos para os “passageiros”. Lonados para proteger do sol, da chuva e do sereno das madrugadas, empreitada sofrida e perigosa, pelo total desconforto e o alto risco de acidentes com perdas irreparáveis.
Essas aventuras demandavam um bom tempo de estrada e, muitas vezes a jornada não terminava com menos de dez dias, podendo chegar até quinze dias, talvez mais, talvez menos. Estradas esburacadas, trechos em terra, o “pinga-pinga” dos ônibus, os pernoites, baldeações de trens e ônibus, o caminhão que quebrava no percurso, acidentes, enfim, motivos não haveriam de faltar. Passado o calvário da viagem, enfim chegavam ao seu destino final.
Dos muitos milhares que chegavam a grande maioria já tinham um destino certo para o pouso final. Casa de parentes ou amigos, algum emprego já certo e, sempre haveria alguém a lhes esperar em suas chegadas. Outros apenas contavam com a sorte, pois não tinham para onde se abrigarem e estavam à mercê de suas próprias sortes e também da sanha de algum malandro espertalhão que os roubasse no pouco que ainda possuíam de valor e dinheiro.
Enganando-os com falsas propostas e informações, caindo, muitas vezes os pobres coitados, naquilo que conhecemos como o “conto do vigário” ou outra qualquer aplicação desonesta e criminosa. Uma vez, agora, na grande metrópole que os fascina, suas atenções se voltam para o deslumbramento das imensas avenidas e parques e das majestosas construções como os edifícios e os grandes casarões.
O movimento da massa humana no frenético “vai-e-vem” das ruas de grande movimento do centro nervoso do comércio, os automóveis, ônibus e os bondes em seus trilhos. Homens e mulheres elegantemente trajados, mensageiros “costurando” a população cumprindo a agilidade de suas tarefas. Ambulantes nas esquinas oferecendo seus “milagrosos” produtos medicinais, bom para todo tipo de doenças.
As vitrines das lojas e os grandes magazines também não passam despercebidos dos olhares curiosos e, num determinado canto ou prateleira está lá o sonho de consumo de muitos deles, o pequeno “radiozinho de pilhas”, que será o companheiro nas horas de saudades e de solidão. Vencido o primeiro impacto com as novidades metropolitanas, seguem os audazes aventureiros para seus destinos e a partir dali traçar suas rotas para suas subsistência que, na maioria dos casos, são absorvidos na indústria da construção civil.
Ponto de partida para a mais destacada das profissões, o pedreiro, seguindo-se da carpintaria e armador de ferragens, com início pela função de ajudante de pedreiro. A dosagem dos materiais e a mistura da massa de alvenaria, o prumo e o nível, os arestamentos e os desempolamentos, a régua para nivelar, aprendizado necessário e importante para a formação do futuro profissional das construções.
Alguns destes personagens já chegaram por aqui com seus ofícios prontos e estouraram seus sucessos. São alguns artistas, cantores, atores, empresários, escritores, empreendedores, etc. Alguns ainda permanecem em nosso convívio. Outros, já nos deixaram. Alguns estabeleceram seus sucessos e retornaram à suas origens. Outros permaneceram ancorados à terra que os projetou.
Outros, não conseguiram o sucesso almejado, retornaram ao berço materno ou estão a vagar por aí, agora mais fortalecidos em suas experiências. Estes são os que aportam a São Paulo que acolhe que é mãe, que ampara, mas que em algumas vezes se torna madrasta e maltrata.
Contudo, tudo é uma experiência nova e um desafio a ser vencido dessa gente que veio das Alagoas, do Pernambuco, da Paraíba, do Ceará, do Sergipe, do Piauí, do Maranhão, do Pará, do Rio Grande do Norte e nos habituamos a chamá-los de “baianos”, inclusive aqueles que da Bahia também vieram.
Hoje, contemplando as muitas edificações que São Paulo abriga, rendo minhas homenagens àqueles que, mesmo antes dos “talabardes”, das botas e dos capacetes, por muitas vezes penderam-se nos altos exteriores verticais e, com o risco da própria vida, ultimaram os arremates finais daqueles que mais tarde serviriam de moradia ou complexo de salas de escritórios.
Foram “Josés, Raimundos, Antonios, Sebastiões”, nomes primeiros de um séquitos de anônimos que, depois da árdua jornada da criação estrutural, recolhia-se ao fim do dia para, em uma cama tosca com colchão de palha, fitar um céu de solidão. Não tão estrelado como o céu do sertão, perdendo-se em seus pensamentos e nas saudades dos que ficaram ao longe e, agora, no consolo de seu “radiozinho de pilhas”, sintonizado em uma rádio “AM” qualquer, que lhes traga o balanço ritmado do baião ou do xaxado.
“Ta vendo aquele edifício, moço? Ajudei a levantar...”.