Desligado
Primeiro foram as pernas. A carne tensionou, os ossos ensaiaram uma resistência tímida, como atores incertos do papel que lhes foi concedido na trama desenrolada no palco, mas logo tudo cedeu ante àquela força irresistível. A carne relaxou sobre os ossos quebrados e os joelhos invertidos dobraram-se sob o peso do corpo. Um milésimo de segundo, um suspiro de estrela, e o barulho enjoativo e revoltante de algo se partindo, esmigalhando-se, um barulho abafado e molhado e ensurdecedor. O corpo, ausente de equilíbrio e firmeza, não logrou êxito em se manter de pé e foi arrastado para baixo e para frente por forças invisíveis. O metal atraía-o como se fosse um pequeno ímã contra uma grande geladeira. Um borrão duro, escuro e quente aproximou-se inelutavelmente de seu rosto, de seu peito, de seus braços, de sua barriga e de seu quadril.
O tronco deitou maciamente sobre o capô, dobrando-se como maria-mole. Sentiu os pés serem içados do chão pelo movimento. Deslizou pelo metal bem polido. Os braços eram pesados demais, grandes demais, desengonçados demais, lentos demais para qualquer tipo de movimento. Eram obscenamente inapropriados para a cena, como um vibrador rosa pintado num Monet. Eram ridículos. Inúteis, ficaram esquecidos, inertes, como que presos no espaço-tempo, alheios àquela dimensão. O peito bateu contra aquela barreira sólida, seguido de perto pelo queixo. Sentiu a mandíbula desaparecer instantaneamente logo depois de provar a calidez do metal contra a pele recém-barbeada. Liquefez-se como gelatina esquecida no calor de um dia de janeiro.
Olhos. Olhos abertos sobre uma boca escancarada, de lábios hirsutos, lábios antes feitos para o opróbio do que para o deleite, lábios que davam guarida a dentes brancos demais, artificiais além do respeitável. Olhos grandes, castanhos, protegidos por sobrancelhas bem feitas, escuras, delimitadas, num rosto branco e perfeito. Olhos afastados, ladeando um nariz corvino, olhos como sentinelas que se desgostam mutuamente mas que estão ligadas pela eternidade por laços inabaláveis. Olhos quase ocultos por cachos ruivos, demasiadamente ruivos, naquela tonalidade impossível que tanto combina com a ocasião. Nunca se esqueceria daquele rosto. Nunca se esqueceria daqueles olhos.
Mas não só olhos pôde notar. Notou as unhas bem feitas, pintadas na cor da moda, unhas preciosas em mãos delicadas que agarravam-se ao volante como se disso dependesse a vida da mulher. E o grito. Ah, sim, o grito. Era um tom agudo contínuo, um zunido inconveniente no concerto urbano, estridente e agressivo como o cantar brusco dos pneus contra o asfalto escandante. Pôde até mesmo sentir o cheiro da borracha queimada, grudada no pavimento quente da rua, antes de avançar um pouco mais, antes de continuar seu forçoso passeio.
Sua mente ficou estranhamente leve quando tudo escureceu. Não precisava enxergar para saber o que acontecia. Seus ouvidos davam-lhe conta de tudo. Eram sussurros reveladores. Diziam-lhe como o nariz havia refugado para a esquerda e cedido sob a pressão do parabrisa, ou a maneira com a qual as maçãs do rosto e a testa racharam na mesma medida em que rachou-se o vidro grosso da dianteira do carro, aquela estranha vitrine atrás da qual protegia-se a assustada boneca ao volante. Somente nessa hora os braços foram lembrados pela cena e, como o resto do corpo, puxados para baixo e para frente, talvez depressa demais, como convém com elementos do jogo que são esquecidos e são postos de imediato em ação para compensar o tempo perdido.
A dor era algo distribuído, uniforme, tão intenso e agudo que praticamente não existia. Era um conceito metafísico, uma abstração nada prática, um devaneio teórico que deixa de ter fundamento quando não encontra uma antítese contra a qual ser confrontada. Quando tudo é escuridão, como saber o que é escuridão se não há luz para lhe fazer frente, para lhe apontar um dedo gordo e arrogante e colocá-la contra a parede? Era tudo trevas. Era tudo dor. E, de uma maneira que pode até parecer doentia, era tudo muito libertador.
Rolou pelo lado, abatendo um retrovisor no trajeto. Esparramou-se pelo chão. Não via ninguém, mas todos o viam. Não notava nada, não conhecia ninguém, mas todos, sem exceção, dirigiam a ele suas atenções. Era o ponto alto do dia. Do mês. Estava acima de tudo. Estava acima de qualquer um. Era um espetáculo inigualável, único, que seria cantado e lembrado pelas gerações vindouras até o fim dos...
Sobressaltou-se com a buzina. A garota xingava. Atrapalhava o trânsito. Péssima ideia ficar pensando abobrinha na saída do estacionamento. Estremeceu, desculpou-se e sumiu. A realidade nunca foi tão decepcionante.