O DESABAFO DE MADAME BOVARY

“Espero que não se choquem com o que eu vou dizer. Acho que vocês aí, nessa sociedade do século 21, não são tão caretas quanto aquele povinho atrasado e mal-amado da França do século 19. Foi naquele tempo que aquele idiota do Gustave Flaubert inventou de me difamar perante a sociedade da época. Ganhei fama de safada, de prostituta, de adúltera por ter traído meu marido. Isso já faz dois séculos e eu não esqueci. Entrei em contato com Leusa e pedi a ela que me cedesse um espaço para eu contar a minha versão da história. E ela, muito compreensiva da minha situação, deixou. O negócio é o seguinte: aquele Flaubert, o autor do livro que joga o meu nome na lama, não sabia nada da minha pessoa! Pois é. Esse canalha lançou, exatamente em 1857, um romance chamado ‘Madame Bovary’, ou seja, eu! Nesse livro, ele começa com uma história água com açúcar de que eu era uma jovem sonhadora, que queria viver uma vida de glamour e blá, blá, blá... Disse que eu me apaixonei por um médico e vi nele a chance de entrar para a alta sociedade francesa. Diga-se de passagem que aquela sociedade nada mais era do que um bando de babões da corte. Lá pelas tantas do livro, o famigerado conta que eu passei a botar chifre no meu marido, que saía com um e com outro. Minha gente, eu não traí ninguém! O meu marido, Charles Bovary, na verdade, era um gay enrustido. Sabem como é, né? Naquele tempo, um médico ser gay era um escândalo. Com medo de o povo descobrir e de perder a clientela, Charles me propôs um casamento de fachada, em troca de um bom dote. Topei na hora! Mas, como eu tenho muito amor pra dar, dois anos depois de casada tive que rever o contrato com Charles quanto a eu não transar com ninguém. Então, combinei com ele de dar minhas escapadinhas às escondidas. Só que o pilantra do Flaubert era amigo de um de meus amantes e ficou sabendo de tudo. Danou-se a escrever o livro, no entanto, acabou entrando pelo cano! A sociedade o condenou porque alguém, naquele tempo, falar de traição feminina era quase que uma heresia, uma ofensa à moral e aos bons costumes. Flaubert chegou até a ir para um tribunal. Desesperado, disse ao juiz que Madame Bovary era ele! Vejam a que ponto chegou? Bom, no frigir dos ovos, o povo se esqueceu da minha história um tempo depois, quando estourou um outro escândalo: o rei, Napoleão III, foi encontrado dormindo nu com um criado! Não sabiam disso? Mas não posso contar mais nada porque se o rei descobrir, pode até mandar me perseguir aqui no Brasil! Nem o Lula me salva!"