'Estação da Luz...'
E... não tem mais trens!
O dia amanhecia com a bruma paulistana característica, enevoada pela pouca neblina que se formara na madrugada e ainda fazia um pouco de frio. Um sol acanhado enviava seu tépido calor mas, deixava ainda uma pequena suspeita pairante: - será que vai chover ?
Ainda não são sete horas da manhã e já estou à caminho da velha estação para comprar minha passagem com destino ao interior paulista, numa prazeirosa viagem de trem que, partirá exatamente à sete hora da manhã, em ponto, e sem atrasos.
Chego à suntuosa construção em estilo Vitoriano, muito embora seu esboço original foi cópia de uma estação australiana e, edificada que foi em meados do século XIX, foi reformada no final do mesmo século e tomou sua forma atual, reinaugurada que foi em 1901.
Dalí, trens partiam para as regiões norte, noroeste e oeste paulista e, para o litoral santista, num serpenteamento de cargas e pessoas de todos os lugares, visto que, a viagem de trem era mais econômica e mais divertida.
Já de posse de meu 'ticket' de viagem, desço as escadas que me levam à plataforma de embarque e, destino-me à composição no vagão de segunda classe da Cia. Paulista de Estrada de Ferro para, depois de consultar meu relógio, faltam poucos minutos para a partida, o que é feito pelo 'chefe' através de seu apitar de longo silvo, respondido imediatamente pela buzina da potente locomotiva.
A partida é suave e sem solavancos e em instantes, ganhamos velocidade. Pela janela posso observar as ruas e casas que passam como 'slides' coloridos. As chaminés e os telhados das fábricas que se avizinham do leito ferroviário e ao fundo, os bairros mais distantes.
Tudo é magia naquela manhã de domingo e a viagem transcorre com tranquilidade e no compasso dos 'trucks' dos vagões que, ao passarem pelas emendas dos trilhos, entoam com ritmidade sem igual a percussão bastante conhecida de todos: 'petéc-petéc, petéc-petéc...', ritmo estes só quebrado quando passamos por algumas das 'agulhas' ou desvios que faz interromper a cadência 'musical'.
As passagens de níveis, aquelas onde os veículos atravessam, também é uma sinfonia a parte com o famoso sinal de alerta de todo o cruzamento ferroviário, o tal do 'dém-dém-dém-dém...', executado por uma campainha juntamente com dois sinais luminosos de alerta de aproximação do comboio.
Voltando ao nosso vagão, quase cheio de viajantes e nos aproximando da primeira parada, a fome me é alertada pelo gostoso aroma de café recém coado que vem do vagão restaurante e, para onde agora me dirijo.
Com suas mesinhas posicionadas junto às janelas e, em impecável arrumação, o que mais me chama a atenção é a higiene e a limpeza do local.
Um solícito garçom toma meu pedido e instantes depois retorna com uma bandeja, perfeitamente equilibrada apesar dos balanços do vagão e, cuidadosamente deposita na mesinha aquele que será o mais feliz de todos os cafés matinais já provados por mim. Pão francês fresquinho e crocante, manteiga (vinha em sachê), bule com café e uma pequena leiteira com leite previamente fervido. Outros complementos à gosto do cliente eram possíveis, tais como frios, torradas, bolos, geléias, sucos, etc.
Os preços para a frugal refeição não eram exorbitantes mas, o suficiente para os serviços e as peças utilizadas e, já satisfeito, poderia retornar à minha confortável poltrona de segunda classe, diferente das poltronas da primeira classe que eram individuais mas, igualmente acolchoadas.
Na passagem de um para outro vagão, através do engate que. geralmente era protegido por uma espécie de 'sanfona', havia uma pequena varanda de acesso onde os passageiros fumantes poderiam dar suas tragadas sem incomodar os demais passageiros. Os banheiros também ficavam naquelas extremidades.
A viagem não só se resumia ao panorama externo ao longo dos trilhos. Um séquito de comércio informal também ocorria no interior das composições. Jornaleiros, baleiros, vendedores de bugigangas, lancheiros e vez por outra, um ou outro pedinte que, valendo-se de alguma deficiência física, tal como cegueira, surdo e mudo ou outra qualquer anomalia, valiam-se para angariar uns trocados entre uma estação e outra e tudo isso longe das vistas do ciosíssimo chefe de trens que não aceitava esse tipo de atividade, mesmo que com passagens compradas.
O inenarrável prazer destas e outras viagens só eram interrompidas quando chegávamos aos nossos destinos finais ou quando em retorno e desembarcávamos na estação da Luz.
Mas..., não temos mais os trens!
A arquitetura ímpar de sua edificação com vitrais trabalhados com a antiga logomarca da SPR - São Paulo Railway, seus tijolos à vista, suas torres menores e o torreão onde está instalado o relógio, quase réplica do londrinho 'Big Ben', nos faz voltar ao passado das velhas e sempre saudosas 'marias-fumaças'.
Em seu interior, as estruturas metálicas, também identificadas pelas letras entrelaçadas da SPR, foram confeccionadas em liga de ferro com boa dose de carbono, resistentes às corrosões e unidas na base do rebite incandescente, portanto, não receberão solda.
Mas..., não tem mais trens!
As passarelas que unem os dois lados internos da estação e de igual confecção das estruturas metálicas, sequer sofrem abalos com o movimento externo ou interno de veículos e agora, unem-se ao novo das plataformas centrais, acesso dos passageiros dos trens urbanos e
metropolitanos, constantemente lotados com a massa popular.
É..., mas não tem mais trens!!!
Estas exclamações são válidas pois, os trens de passageiros e para longos percursos foram abolidos, desativados, tirados de circulação ou qualquer outra denominação que se queira dar.
Num esforço de logística, até o 'Trem de Prata' que antes partia originalmente da estação Roosevelt com destino ao Rio de Janeiro, passou a ter sua partida da estação da Luz e, pouco tempo depois foi abolido.
A expressão 'trem' poderia ser definida como 'transporte rápido e econômico de massas' e, apesar da lentidão e demora de suas viagens, por conta da topografia de seu percurso, ainda seria a melhor
alternativa para o transporte das grandes massas.
A mim, só resta lembrar com sentidas saudades e deliciar-me com as pequenas maquetes, o romantismo e a singularidade de uma viagem pelo imaginário de minhas lembranças.
Quem sabe, em futuro, venhamos a ter o mesmo glamour dos tempos de outrora e a nossa querida e centenária estação da Luz nos faça reviver, novamente, as viagens inesquecíveis que só os trens podem nos proporcionar. Mas, e por enquanto, 'piuíííííííí' para todos.