Lembranças do passado
Sentada na praça Bela via a vida passar. Sentia que perdera tempo. E não era o tempo agora, era o vivido.
Mesmo em seus belos dias sempre fora cercada por seres cautelosos podando-lhe as arestas da vida. Mas a necessidade de viver e o pouco tempo que lhe restava, colocava – mesmo que por derradeiro empreendimento – o desejo de viver.
Viver intensamente!
Acompanhada como sempre fora nos últimos dez anos pela irmã, abandona-a e na esperança do milagre da vida, nos seus noventa anos, vive!
A vida, como lhe dissera a vidente em sua última consulta, oferecia nada mais que seis meses de vida. Restara-lhe, ainda, pouco mais de três meses. Irmã e companheira deixara de lado, Bela deixara também a velha casa da família para viver intensamente seus últimos dias.
Bela como sempre fora bela e ainda conservava, pensava altamente nos casos de amor que fora podada em sua juventude. Os transeuntes passavam, sentavam, levantavam; pombos – que infestavam nojentamente a praça, alçavam pequenos vôos na busca de grãos deixados nos frisos dos mosaicos. A vida passava. Bela, sempre bela, enchia-se a cada passo que ouvia, a cada murmúrio deixado no ar, e tomava fôlego.
Como quisera ter filhos!
Amante não amada, Bela viveu as sete últimas décadas a remoer os ares que o amor deixa efervescendo no coração. E com ele os ideais de família, de lar.
Vôos rasantes quisera fazer – como os que observava agora, mas como um pássaro na gaiola, as ciladas que a vida lhe proporcionara puseram seus ideais em segundo, terceiro plano – nunca realizados.
Só. Tentando ser independente nos poucos dias que lhe restavam, Bela impõe e decide viver ardentemente um sentimento de família – o de amor, de amar e ser amada.
Não muito longe do banco que escolhera naquela tarde um senhor de barba branca observava a vida por um prisma diferente.
Semblante triste, ar cansado, rarefeito. O senhor de barba branca não consegue notar os vôos rasantes dos pombos, nem os mesmos catarem grãos nos frisos dos mosaicos, nem a vida passar.
Alheio a tudo.
Bela observa-o. Capta a sua morbidez. E lentamente – para os quase excluídos da vida ativa – o relógio passa. Lentamente.
Lentamente!
O mundo não parece ser real. Bela volta à juventude, aos seus vinte anos onde as arestas da vida lhe fora podada; o tempo. Cruel, implacável, jamais voltaria.
O homem de barba branca se faz moço; barba azulada, cabelos bem aparados, de terno e gravata-borboleta lhe estende as mãos. Bela viaja através duma janela no tempo.
Ah!
Bela, a bela Bela viaja no túnel do tempo! Cabelos claros e pele macia, num longo branco, estende as mãos...
O som ecoa ao lado...
A janela se fecha.
Lentamente Bela volta ao agora. A vida corre! O tempo, perseguido pelo tempo, vira perseguidor do tempo que é perseguido...
Trovões ecoam no ar. Bela observa. Levanta-se. Não há mais pombos a dar vôos rasantes e nem a buscar grãos entre os frisos dos mosaicos.
O homem de barba branca ainda está lá. Ainda está lá, solitário. Só! O homem que parece alheio a tudo ainda está lá.
Em lentos passos Bela consegue chegar ao homem de barba branca.
Frente a frente, Bela fica imóvel. Fica também alheia a tudo. O homem de barba branca – o homem de terno e gravata-borboleta. Ele! No túnel do tempo.
Olhos abertos, fixos; imóvel, ambos.
Bela retoma a respiração e procura sinais vitais depois daquelas longas sete décadas. Nada!
Senta-se ao lado: o túnel do tempo. Viaja. Filhos. Netos. Família! Família! Envelhecimento a dois. A canção rítmica do amor ao toque do coração.
Bela, que de bela se desfez, na vida real não suportou, ou a vidente errara: ali ficou junto ao homem, junto ao homem de terno e gravata-borboleta, junto ao homem de barba branca.