Reconciliação
Lucia calou-se. Aquela acusação foi tão surpreendente que todos os seus sentidos congelaram.
Sempre considerara que a mãe a compreendia e respeitava. Mas as duras palavras lhe tiraram o chão.
- Você é igualzinha a seu pai!! Não confia em ninguém!! Não conversa!! Não dialoga!! Não troca!!
- Você precisa aprender a conversar, a se expor!!
Deixou de lado o livro, sem se questionar por que de repente as palavras se materializaram de novo, ecoando do passado.
O questionamento que lhe vinha à mente era: Por que??
O problema era ela ser reservada ou ser igual ao pai? O problema era ser reservada ou parecer que não confiava??
Se houvesse uma forma de demonstrar essa confiança sem palavras, a reserva seria aceita?? Seria ao menos respeitada??
Nunca lhe passara pela mente que seu comportamento incomodasse tanto sua mãe.
Sabia dos demais, na verdade da maioria dos demais, mas o que importava era a minoria que verdadeiramente a conhecia e compreendia. Ou pelo menos respeitava, afinal não havia as acusações e os ultimatos: você tem que; você precisa de...
Mas a realidade nunca obedece a devaneios.
O telefone tocou. Era Mariana.
- E aí?? Vamos onde hoje??
- Sei lá...tanto faz...
- Menina que voz é essa? se anima, afinal eu não posso sair com alguém com uma voz dessas...
- Então não sai...
- Nossa!! que mal humor Lucia!! Mas deixa disso, porque a sua salvação chegou. Vamos lá! Passo aí daqui a meia hora, viu, meia hora. A gente decide no caminho...
Lucia começou a se arrumar.
Decidiu por um jeans, uma blusa preta bordada com miçangas coloridas e uma sandália alta com salto fino. Olhou-se no espelho e gostou da mistura. O jeans justo realçava suas longas pernas, a blusa com miçangas contrastava com a tonalidade de sua pele, sempre muito branca para os padrões atuais, mas ela gostava e o arremate final ficou por conta do gloss. O brilho realçava seus lábios com delicadeza, fazendo ver claramente o contorno bem feito.
Estava pronta e qualquer um que a visse jamais imaginaria que levara somente 10 minutos para a metamorfose. Lucia era exatamente assim, capaz de se metamorfasear em minutos e a metamorfose dela nunca não era apenas externa.
Cumprimentou Mariana e viu que ela trouxera dois amigos.
- E aí??
- Vamos lá, está decidido, no Atoleiro hoje vai ter a apresentação de um grupo de dança africana e eu não quero perder. O Thiago, a Bete, Eliza, Rafinha e o Biba já estão lá.
Mariana sabia que Lucia detestava “encontros” e pôde ler seus pensamentos quando a cumprimentou e viu Bruno e Gabriel no banco de traz. Não que Lucia fosse do tipo transparente, muito ao contrário, seu jeito reservado era sempre um enigma e isso agradou Mariana desde que se conheceram há seis anos, pois no final das contas entendera que ter a confiança de alguém assim especial era um presente do destino.
Algumas pessoas não demonstram confiança com excesso de palavras, mas com gestos e olhares, ouvindo, compreendendo, estando presente e Lucia era assim.
Na verdade Lucia era perfeita. Era daquelas pessoas que ouviam sem emitir julgamento e mesmo quando era solicitada a sua opinião tinha o discernimento de devolver a pergunta, ela sabia que a decisão já existia no mais da vezes e respeitava isso, não que se furtasse de dizer o que pensava, mas sabia fazê-lo com tanta delicadeza e respeito e isso era raro, muito raro, principalmente quando a maioria nunca ouvia, simplesmente esperava que a pessoa terminasse para expressar seus próprios pensamentos.
Um mundo de vaidades e sábios-mestres, todos com uma cartilha de sabedoria pronta, para todos os momentos e todas as pessoas.
Bruno foi o primeiro a falar:
- Fiquei sabendo que este grupo é de Moçambique e até já estiveram em turnê na Europa.
- Eles estão juntos há 06 anos. Completou Mariana.
- Outro dia eles fizeram uma rápida apresentação na Praça da República, como parte das apresentações do Festival de Dança. Soube também que foi concorridíssima a apresentação deles no Teatro, os ingressos acabaram rapidamente, logo que a bilheteria do festival abriu.
- É verdade, eu queria ter visto mas não consegui. Espero que retornem ano que vem, até lá o jeito é ir no Atoleiro hoje.
Quando foi que dança africana passou a ser moda?? perguntava-se Lucia ao ver que praticamente não havia mesas.
Biba e Bruno conseguiram uma mesa num lugar afastado, mas aconchegante, então foi possível assistir toda a apresentação e ainda conversarem com a tranqüilidade que é possível quando todos estão alegres e sob o efeito de uma ou duas cervejas e quem sabe algumas mais.
Os sorrisos transformaram-se em gargalhadas, o volume das vozes se elevaram, as palavras tropeçavam em si mesmas, demonstrando que não apenas as emoções, mas também o pensamento já não encontrava o caminho da linguagem, talvez porque os neurônios estivessem nadando e chocando-se entre si.
Ao despedirem-se Lucia disse:
- Mariana, que tal um cineminha amanhã à tarde? Só nós duas...
- Só nós não tem graça!!
o olhar de Lúcia foi impagável..
- Estou brincando com você, sua boba. Marcado. Nos vemos lá.
Saíram do cinema alegres e felizes.
- Desembucha! Cinema a duas é divertidíssimo, mas eu não sou boba.
- Briguei com minha mãe.
- Você! Ahhh fala sério?! E como foi, ela precisou ser hospitalizada ou você a amarrou dentro de casa para impedir o BO...
- Não é brincadeira Mariana! Na verdade não “brigamos”, nos desentendemos e a razão do desentendimento é que me assustou!!
- O que houve?
- Lembra do Roberto?
- Claro, nem entendo porque vocês não estão mais juntos, mas me cansei de ser advogada de um caso perdido...
- Tá, não vamos polemizar de novo, ok!
- Você acredita que o Roberto ligou para ela?
- Pra quem?
- Pra minha mãe Mariana.
- Nossa!! Que babaca.
- Pois é, nem quis saber as lamurias que ele disse, simplesmente falei para minha mãe que não estávamos mais juntos e ela ficou furiosa.
- Disse-me que achava um absurdo saber do rompimento de meu namoro através do EX-namorado e não através da filha.
Acusou-me de não confiar nela, de não dialogar, de não procurar ajuda e mais um monte de coisas...Ora amiga, já estou crescidinha não é?! se resolver terminar com algum namorado, isso é assunto meu, não preciso da licença e dos conselhos dela para isso, certo?!!
- É!
- Além do mais, eu sabia que ela viria com a mesma enchente de qualidades que eu já havia ouvido de VOCÊ e estava cansada. Então eu decidi que o tempo se encarregaria de mostrar que o namoro havia acabado. Afinal não demoraria a perceber que não estávamos mais nos vendo, então ela mesma concluiria isso, certo!
- Errado. Os pais são sempre controladores e principalmente as mães, estas então, se as filhas não falam algumas coisas, ou praticamente todas as coisas, parece que elas se sentem excluídas ou algo assim, sei lá...
Tomara que eu não seja assim com minhas filhas... Sabe, nós confiamos nelas, mas temos nossas próprias amigas e as vezes as amigas ouvem melhor que elas.
- Isso! É isso! Mas ela me acusou de tantas coisas. Até meu pai ela colocou no rolo. Uma coisa horrorosa! Eu praticamente virei o meu pai e pior o meu pai que a traiu, você acredita?...
- Ahhhh acredito. Eu não sei de onde elas fazem essas conexões. É bizarro!
- Não, o pior é que eu fiquei irritada e disse a ela que havíamos terminado há dias e que se ela fosse um pouco, só um pouquinho observadora, ela teria percebido mais rapidamente.
- Nossa! Você pegou pesado amiga. Ela não é adivinha, sabia??
- Pois é, foi aí que eu virei um monstro, alguém que não dialoga, não confia, incapaz de uma amizade verdadeira.
- Me diga Mariana, eu sou assim? Pode dizer a verdade, eu sou assim??
- Não amiga, você não é! Você é reservada, é muito na sua, mas você é honesta, é sensível, é leal! Você nem sempre diz o que gostaríamos de ouvir, aliás você as vezes não diz. Você nem sempre divide e compartilha suas coisas, o que gostaríamos que você fizesse mais. Mas e daí?? É seu direito, é sua privacidade. Mas não espere que sua mãe compreenda isso.
- Você acha que eu deveria compartilhar mais, falar mais da minha vida? Acha que não confio nas pessoas?
- Lucia você é uma pessoa linda, se você mostrar mais isso para o mundo as pessoas vão gostar de você, nem todas, mas vão gostar, mas essa é uma decisão sua, não pode ser por pressão, só para mostrar que você confia na sua mãe ou em quem quer que seja. Você confia nas pessoas, talvez você não confie em si mesma, as vezes.
- Mariana eu confio em mim! Confio!
- Calma amiga, desculpe. Nossa! Acho que poucos conhecem essa explosão tão autêntica em você, ainda mais você que é sempre tão ponderada. Sinceramente sinto-me honrada por ser umas das pessoas que te conhecem.
- Eu não vou ser o que esperam de mim, não quero ser! A maioria é faladeira, extrovertida e daí?? Eu não sou! E o mundo tem espaço para mim e se não tiver vou criá-lo. Lei da Atração amiga, prosperidade, não é disso que se tem falado tanto por aí...
- Hein?? Ahhh deixa pra lá...Não acho que você tenha que ser o que esperam, ou seguir padrões, você não é assim, além do mais, você tem amigos que gostam de você e te respeitam.
- É isso.
- Então ...que tal jogarmos boliche?
- Demorou!! Ainda mais porque hoje você não tem o Biba para vencer por você.
- Pois é, hoje você é que não vai ter o Biba para justificar seu fracasso.
Naquela noite ao deitar-se o livro estava em sua escrivaninha, a lembrar-lhe dos motivos que a levara fechá-lo abruptamente.
Não tinha certeza se deveria retomar o assunto mal acabado com sua mãe, mas deixaria esta decisão para manhã seguinte.
Uma noite de sono depois de tantas emoções, colocaria os sentimentos em equilíbrio e no final das contas, apesar de seus, diriam alguns, apenas 17 anos, aprendera que emoções não trazem boas decisões.
Lucia decidira melhor que sua mãe, afinal suas emoções em ebulição seriam péssimas conselheiras, principalmente quando se chocassem com as emoções, também em ebulição, de sua mãe.
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O café da manhã transcorreu como todos os outros.
Era assim todos os sábados e domingos, com sorrisos, brincadeiras, piadas e geléias e tinha ainda aquele maravilhoso leite com açúcar queimado, especialidade de sua mãe.
Lucia aprendera a amar os finais de semana, sempre regados ao sabor da intimidade do amor.
Dona Rita foi a primeira a quebrar a idílica rotina do final de semana.
- Sabe Lucia, não consigo entender, o que tinha o Roberto de tão insuportável?? Era um rapaz trabalhador, honesto, estudioso.
- Ele não era um rapaz trabalhador etc e tal mãe, ele continua sendo.
A ironia veio automática, foi impossível detê-la e Lucia percebeu que as emoções ainda estavam em desalinho...momento inoportuno para conversas...mas enfim nem tudo está no nosso controle, se é que algo está, e então sua mãe acabara de resolver que o assunto tinha que continuar e agora.
- Pois então!! Ele não mudou!! E o que aconteceu?? Vocês brigaram?? Ele brigou??
- Mãe eu não julguei, avaliei e nem mesmo condenei quando você e o pai resolveram que não conseguiam mais, eu simplesmente respeitei, apesar de amar vocês dois.
- É diferente! Eu fui casada com seu pai por 17 anos. Voce não sabe o que é isso!
- Ahhh, agora é uma questão de tempo...
- Não fuja do assunto Lucia. Eu quero apenas conversar, não se trata de querer mudar sua idéia, muito embora...
- Você não me respeita mãe. Não me aceita como sou...Lucia a interrompeu e não permitiu que terminasse sua frase.
- Filha, o mundo é muito competitivo e não aceita pessoas que não se expressam e se furtam de relacionar-se com os demais. Isso te trará muitos problemas, em várias áreas da sua vida.
- Mãe, eu não me furto em me relacionar. Eu não preciso ter 1.000 amigos para ser legal, e não vou falar pelos cotovelos só porque é isso o que todos esperam.
- Filha compreenda, eu amo você, mas o mundo costuma ser duro, insensível e até mesmo agressivo com aqueles que não sabem compartilhar e fazer parcerias.
- Eu sei mãe, eu lido com esse mundo há muito tempo, eu o vejo com muito mais clareza do que você pensa. E tem mais. Não tema por mim, eu farei o meu caminho e talvez ele não seja o que você espera ou o que o mundo compreenda, mas eu tenho o meu espaço e vou construí-lo, mesmo diante de todos os obstáculos, mas eu não vou me prostituir mãe, isso eu não vou fazer!
- Meu Deus! Eu não estou falando isso! Que negócio é esse minha filha!!
- As vezes como o mundo mãe, você é insensível. Estou falando da prostituição dos meus sonhos, daquilo que acredito, da pessoa que eu sou e da qual eu gosto de ser. Eu não vou vender essa pessoa pela aceitação dos demais, nem pelo sorriso de tantos outros. Nem pelo seu sorriso mãe.
Eu gosto de você, mas nem pelo seu sorriso, que é tão caro e importante para mim, eu trilharia um caminho com o qual não concordo.
- Vocês adolescentes se acham os dono da verdade!
- Tenho 17 anos mãe, faço faculdade e trabalho, não sou adolescente e honestamente tenho pena dos jovens que com 17 anos ainda são tão adolescentes.
-Se o mundo quer me julgar e condenar pelo meu comportamento, só porque este comportamento é fora do padrão a ser seguido, então que seja. Eu não concordo com essa psicologia que determina as pessoas pelo seu comportamento, sem conhecer verdadeiramente. Isso é julgar pelas aparências, apenas agora o nome é cientifico, ou pretensamente cientifico, porque agora é psicologia, psicologia do comportamento.
- Eu confio em você mãe e vou guardar a minha privacidade naquilo que achar que devo.
Eu faço parcerias e compartilho, apenas não faço do jeito que todo mundo faz. Eu faço isso com sorrisos, ouvindo as pessoas, sendo fiel a seus segredos, faço isso com os olhares que trocamos e nos quais você me entende sem nenhuma palavra.
Diga-me mãe isso não é compartilhar?
Dona Rita compreendeu que abordara o assunto desastradamente. Não se deu por vencida, mas não pode deixar de considerar a maturidade e a coragem impressionantes na crítica que a filha fizera. Não havia pensado nunca nestes termos. Julgamento pelas aparências, sim era exatamente o que era!
Então lembrou-se de sua juventude e do quanto detestava o famoso ditado “diga-me com quem tu andas e eu te direi que tu és!”. Hoje tinha discernimento para saber do peso das amizades na juventude, mas compreendia o quanto uma avaliação pelas aparências pode ser um desastre e começou a refletir sobre tudo isso...
Desta vez não foi o olhar, foi o abraço que trocaram, ele restabeleceu o final de semana e o selou com amor.
Não houveram palavras, mas houve partilha, daquele tipo de partilha que é perfeita.
Perfeita de um jeito que só a realidade faz valer a pena, de um modo que a qualquer momento se despedaça e que justamente por isso é tão “perfeita”.
(Valéria Trindade)