O CONTO DO COCÔ DE CACHORRO
A casa inteira já estava acostumada aos hábitos do cão. Assim tem sido desde que o homem resolveu que os animais passam a ter uma certa primazia em sua vida. O padrão ideal que tem feito um tremendo sucesso na atualidade é uma família média, casal com dois filhos e um animal doméstico. De classe também média em modos de consumo e poder aquisitivo, de pensamentos médios acerca das problemáticas solúveis e insolúveis da existência. Desde, claro que morem em condomínio onde o regulamento permita animais ou tenham as suas próprias casas independentes. A casa se adapta aos hábitos dos bichos para não deixá-los estressados, Para isso, quero dizer, estressados já bastam os donos que andam as turras com seus semelhantes e com raiva do mundo. Os bichos precisam sempre estar com aquela abanada alegre de rabo para demonstrar que tem alguém que gosta dos humanos. Os cachorros gostam muito. Ainda mais se forem bem tratados.
O cão da casa, desde que largou as tetas da cachorra sua mãe estava habituado a comer apenas ração por decisão de harmonia da família. Coisas de gente que não gosta daquele cheiro insuportável de cocô de cachorro que come carne e restos de comida dos donos pelo terreiro. Mas a preguiça, sendo mãe do progresso, é também algoz dos próprios preguiçosos de vez em quando. O cão, chegado às mordomias da casa, entrava em todos os cômodos e ficava em volta do fogão ou da pia quando alguém preparava uma comida qualquer. Acabava ganhando um pedaço de qualquer coisa e já não dava mais sossego se não ganhasse um pedacinho de carne, um miolo de pão com manteiga, legumes, talos de verduras; até salgadinhos e refrigerantes lhe davam de vez em quando. Família é isso, não esqueçamos. Essa união indissolúvel que os animais domésticos construíram com o ser humano desde épocas muito remotas e turbinadas agora , na modernidade pela solidão e indiferença dos homens uns com os outros. Então, êta cão para comer comida! Já estava ficando viciado num prosaico prato do dia e a ração durava meses. Tanto que chegava a perder a validade. Ele tinha lá nos terreiros da casa seus cantinhos de fazer as necessidades. Exceto quando era período chuvoso. Cão danado. São Pedro cismava de lavar o seu território e então ele escolhia outro qualquer, desde que estivesse sequinho.
O seu dono, o Jurandir, o mais médio e vistoso exemplar da classe média era muito escovado, cheiroso, alinhado no trajar e outras periquitices que a vaidade humana vai aderindo com a oportunidade que lhe é oferecida no mercado da beleza. Os seus sapatos, sempre muito brilhantes, eram de bico mais fino e depois mais retangular, conforme a moda ia evoluindo para o caricato ou não, dependendo de cada onda que a televisão mostrava de padrões de beleza ou a verba que a família tinha disponível. Naquele dia tinha uma reunião importantíssima no escritório e estava atrasado. Tomou o banho habitual da manhã, seu café e saiu na correria tão corriqueira dos dias de hoje. O ônibus também não variava. Nos horários de pico, lotado. Então era comum um cheiro ou outro destoar daqueles corpos amanhecidos com aparência insuspeita. Segundas feiras, muito cheiro de álcool nos hálitos e no resto da semana os mais comuns. De perfumes a sovacos menos perfumados e hálitos não muito aproximáveis. Mas tinha um cheiro estranho naquele dia. Olhou, cismado se eram as solas dos sapatos e viu que não era com ele. Foi-se, preocupado com o horário. Chegou e a reunião já estava para começar. Não era somente ele o atrasado.
Uma pausa. A vantagem hoje na correria das cidades é que você marca um compromisso e se atrasar, provavelmente o seu interlocutor também vai, afinal o trânsito é bastante democrático em termos de fornecer o caos. Só mesmo quem possui helicóptero escapa dos engarrafamentos. Esse já está numa classe acima da média. Ou então se sair de casa ainda na madrugada. Esse já está numa classe abaixo da média.
Bom, então o Jurandir teve tempo de refrescar-se em frente ao ventilador da sala da secretária para espantar um pouco do suor que lhe incomodava as belezuras da indumentária. O cheiro continuava muito próximo a ele. E agora incomodava a todos que aguardavam na sala e olhavam-se entre desconfiados e constrangidos. Com a chegada do chefão, eis que entram todos para o local da reunião. O cheiro lá, impregnado nas narinas. Ninguém identificava a origem do catingueiro, então poderia ser com qualquer dos presentes, exalando de algum ponto não localizado. Aquela firma, como não era do ramo de alimentos nem de cosméticos ou ainda de produtos de higiene, concluiu a sua reunião estando todos com cara de cismados. E o Jurandir só viria a saber que era com ele de volta à sua sala, sozinho mas acompanhado do odor. Trancou a porta por uns instantes, tirou toda a roupa, cheirou-a e ao tirar os sapatos é que descobriu que havia pisado com a pontinha do sapato no cocô do cachorro de modo que não dava para ver levantando-se a sola. E o cocô se instalara ente a sola e a costura do pé esquerdo. O clima ia ficar ruim para o cachorro quando ele voltasse para casa, o que fez imediatamente de táxi e descalço, com os sapatos providencialmente embrulhados em um jornal velho.
P.S:
Este é um conto de quase ficção. Qualquer semelhança com fatos ou situações da realidade, eu mudei o nome do Jurandir.