SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO
Fogo!
É fogo!
È fogo sim, tentar manter a chama do amor acesa com o passar dos anos e em meio às dificuldades do dia-a-dia cheio de problemas e dificuldades.
E foi tentando por fogo no relacionamento morno, quase gelado que ela quase incendiou a casa. Mas tudo o que conseguiu foi atrair a atenção dos vizinhos que entre solícitos e curiosos, aflitos com a fumaça que saia em profusão pelas janelas do apartamento, se apressaram em chamar os bombeiros para apagar o que pensavam ser um incêndio doméstico.
E com isso apagaram um incêndio que nem chegou a começar e levaram de enxurrada os sonhos de uma noite de verão.
E alheia ao tumulto lá fora, aquela mulher empenhada em salvar o seu casamento ainda tentava fazer com que aquele marido tão convencional e medíocre, entendesse finalmente o que ela queria e decifrasse o significado de todo aquele aparato que tanto lhe custara a preparar e no qual ela pusera toda a esperança de que pudesse mudar o triste destino de uma relação que estava morta e onde ele, com a sua atitude de ignorar ou de notar com estranheza e deboche, estava acabando de enterrar, tão solenemente, a sua vida sexual e amorosa.
A camisola vermelha de lingerie parece não ter sido colorida o suficiente pra despertar a sua atenção. Nem as poses sensuais e provocantes tão cuidadosamente estudadas quando postas em prática, logo ao abrir a porta para ele, surtiram o menor efeito. Se ela fosse o toureiro o touro teria passado batido!
As rosas em pétalas escarlates derramadas pelo lençol de seda branco da cama ele esmagou todas com o seu corpanzil cansado e frouxo sem nem sequer notar o detalhe.
O som tocando músicas românticas escolhidas cuidadosamente para ajudar a criar o clima ideal foi desligado sem dó nem piedade por ele logo que entrou em casa. Sem tomar conhecimento do que estava rolando.
O extraordinário silêncio, fato completamente anormal tão cedo da noite na casa não foi suficiente para fazê-lo notar e estranhar a ausência das crianças, em quem a mãe dera uma canseira enorme durante todo o dia - escada acima - escada a baixo - para que fossem dormir mais cedo, como parte da estratégia geral do plano de resgate.
O jantar tão especial feito no capricho, conforme manda o figurino e seguindo à risca as dicas do Mais Você da Ana Maria Braga e o que já vira nos filmes, novelas e programas de TV foi digerido por ele como uma comida qualquer sem glamour. Sem nenhum elogio. Sem hummmm. Sem aquela de comer rezando. Sem um ai. Sem mais pra que. Sem mais saudade. Ele nem percebeu a pitada enorme de amor e desejo que ela pôs em cada ingrediente para apimentar o que andava completamente insosso feito chuchu.
Só as velas acesas que rodeavam a cama tiveram o poder de chamar a atenção do marido exausto e morto de sono. Mas não surtiram o efeito desejado. Não como ela queria. Muito pelo contrário. No seu afã de fazer as coisas do jeito mais eficiente e perfeito ela se esqueceu de providenciar cedo as velas. E quando lembrou já era muito tarde para comprar na forma e quantidade desejada. Assim teve que improvisar. Pediu ao filho que comprasse no mercadinho perto de casa todas que encontrasse. E então foram as velas comuns acesas e dispostas em volta de toda a cama que tanto chamaram a atenção e irritaram o seu marido, que perguntou entre irônico e abusado: - Da ao menos para apagar uma parte dessas velas para que eu possa me deitar. Estou exausto de tanto trabalhar. O dia hoje não foi moleza.
E foram também a fumaça e o cheiro que elas exalaram responsável pelo tumulto lá fora.
O apelo da urgência no estabelecimento da rotina diária foi mais forte que qualquer apelo sensual e romântico e nada foi capaz de despertar a libido desse marido estraçalhado pelo imediatismo das coisas materiais urgentes, na luta desigual e insana pela sobrevivência física que rouba as energias e embota a capacidade de sonhar.
E ainda sem se dar conta do que estava sucedendo ela contrariada teve que atender às pancadas fortes e urgentes na porta do apartamento e os gritos aflitos da vizinha chamando seu nome. Espero que seja alguma coisa muito importante para ela vir atrapalhar assim os meus planos, pensou ela ao se dirigir à porta. E qual não foi sua surpresa quando esta, a se ver frente a frente com ela, perguntou ansiosa, mas já um pouco aliviada onde era o fogo e se ela e as crianças estavam bem.
Tão empenhada estava que nem percebeu o barulho dos bombeiros lá fora se preparando para agir nem o burburinho das vozes curiosas que foi chegando até ela ao abrir a porta da frente e a visão de muitas cabeças tentando assomar o apartamento para ver de perto o que estava acontecendo, na esperança de uma tragédia iminente para contar para os que não tiveram acesso.
Tudo isso despertou a nossa romântica senhora do seu sonho para fazê-la cair de novo na dura realidade da sua vida onde o glamour e a sofisticação soam como sinal de perigo para quem vive às voltas com o urgente e catastrófico no lado mais cruel e cinzento da vida. onde vela serve para suprir a falta de luz. Fumaça é sinal de fogo. Fogo é perigo de incêndio que destrói barraco. Água é artigo sempre escasso. Água demais é prenúncio de inundação e tragédia. E o coração que vive em sobressaltos não consegue sossegar e sonhar. E a mente presa à azáfama do dia-a-dia não consegue ir além da imaginação.
Fogo!
É fogo! É fogaréu.
E la está ela de volta pro seu fogão, seu tanque de roupa, sua pia de prato, assumir o seu papel, Rapunzel, eternamente confinada no seu castelo de areia, sem direito a lua de mel.
De olho no céu!