As Flores

Ninguém mais lembrava de seu nome. Todos o chamavam de Uga. Era o som que aquele homem humilhado por todos os moradores de uma pequena cidade emitia com mais freqüência. Ninguém entendia direito o que ele falava ou queria dizer.

Ficou assim, feito criança, depois de um acidente. Andava de bicicleta quando um caminhão o atropelou. Quase morreu, permaneceu meses no hospital e quando voltou para a casa, não se lembrava dos pais, de seu quarto, de seu nome, de nada de sua vida.

No início os pais cuidaram dele. Os amigos e vizinhos os abandonaram. Aprendeu novamente a caminhar, a ter uma certa independência. Logo depois os pais falecerem, primeiro a mãe e dois anos mais tarde o pai. Eles lhe deixaram alguns bens, que misteriosamente evaporaram. Sobrou-lhe um casebre de uma peça e um imundo banheiro, na periferia da cidade, na última das últimas quadras, lá onde ninguém ia, onde ninguém gostaria de morar, sem luz nem água.

Suas roupas eram sempre as mesmas, sua pele era encardida, tinha manchas de sujeira, além de feridas nas pernas, mãos e no rosto que não eram tratadas e quando seu cheiro era sentido a metros, o pessoal da prefeitura o levava onde se lava as máquinas e os caminhões e o banhavam com uma mangueira, como um porco ou uma vaca, fosse no verão ou inverno.

Andava pelas ruas sem rumo, falando e gritando consigo ou com algum amigo imaginário, despertando o desprezo das mulheres, o deboche dos homens e o medo das crianças menores, e, quando elas cresciam e perdiam o medo, jogavam-lhe pedras e chutavam suas pernas, fazendo-o tropeçar, o que provoca risos em seus pais e mães.

Era o monstro dos sonhos das crianças ao lado do bicho-papão.

- Se não comeres direito, o Uga vem te pegar! - Se não te comportares bem, o Uga vem de levar! – profetizavam pais educadores aos filhinhos assustados.

A comida, ele pegava da lata de lixo de um restaurante, que era dividida com os cachorros. Ninguém falava ou se importava com ele. Estava condenado à eterna solidão pelos cenhos fechados, os olhares de reprovação pela mínima atitude que tomava ou pelos olhos de acusação, como se ele fosse culpado por toda a sua tragédia.

Além de louco, muitos achavam que era violento e várias mulheres diziam que era um tarado. Algumas haviam lhe visto com flores nas mãos, diversas vezes. Estarrecidas pensavam que ele pudesse tentar alguma coisa com alguma jovem, um flerte, um namoro impossível ou até um estupro.

- Por que todos os dias pela manhã, ele tinha aquelas flores nas mãos? – indagavam-se assustadas as senhoras de bem da sociedade local que em pânico procuraram o padre, que depois de muito pensar, dizia que o pior era se uma degenerada estivesse usando o físico do incapaz, para satisfazer seus instintos, suas depravações e colocá-lo em pecado, o que deixava as mulheres atônitas, a se benzerem.

Aquela manhã de primavera começou fria, até com uma leve neblina. Ele acordou esfregando os braços procurando se aquecer. Já estava vestido, dormia com as mesmas roupas que andava na rua. O sol tímido começava a brilhar e ele ganhou a estrada de terra com seu jeito meio apressado e cambaleante. Caminhava meio torto, trôpego, fazendo perguntas a si mesmo. Passava a mão pelo rosto e ria. Um galo cantava ao longe, o caminhão do leiteiro passou rente a ele, buzinando, fazendo troça para que o estorvo saísse da estrada. Mas ele não deu bola. Agachava-se aqui e ali, às vezes entrava no mato, para pegar as flores que encontrava. Quando viu que já tinha um número suficiente de ramos, acelerou o passo e se dirigiu ao cemitério, que estava vazio.

Diariamente repetia o ritual. Caminhava apressado até chegar ao túmulo dos pais. Ali, depositava as flores, fazia uma oração e prestava sua homenagem. Depois descia para a cidade e começava sua caminhada sem rumo na cidade das pessoas de bem, direitas, honestas, humanas, tementes a Deus.

Paulo Antonio Branco
Enviado por Paulo Antonio Branco em 24/04/2010
Reeditado em 24/04/2010
Código do texto: T2217199
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