A Menina e o Mundo Cruel
------------------------------------------------------------------- <*(Este conto, infelizmente, foi produzido sob a analise ocular dos fatos e tem uma personagem real, a quem reservo-lhe o direito de preservar o seu verdadeiro nome)*>
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Já era dia. Lá se ia a Menina, corpo franzino, mais para esquelético de alma insustentável seguindo, ainda sonolenta, (a rede de dormir talvez nem fora sentida), cambaleando pelas ruelas de sua comunidade, irreconhecendo a si mesmo entorpecida pelo consumo da droga a quem entregou por completo a vida sã de outrora. Ela senta em um lugar e outro, irrequieta dividindo a sua pouca atenção com o sol incômodo e escaldante que toca-lhe a face.
Agora não mais era para perceber a madrugada fria que abraçou a sua causa durante toda a noite em que esteve mendigando moedas e outros para obter seu próprio definhamento, mas para pensar no que fizera, sem a condição mínima de reflexão. Mergulhada no submundo de tragédia coletiva, ela planeja habilmente o itinerário a ser cumprido nesse novo dia, como se fora a trabalhadora a alcançar metas e objetivos.
Os lugares são os mais diversos. Vai desde o Mercado Público, pontos de chegada e saída de ônibus vindos das regiões adjacentes, até o Terminal Rodoviário da cidade. A fissura por consumir o “crack” faz-lhe desavergonhar-se e despisse de qualquer impedimento emocional ou reflexivo que lhe surja a qualquer momento. O corpo sustenta-se apenas pelo vício que lhe furta a consciência, e toma posse do seu cérebro faminto de alucinações.
A escola já lhe havia sido apresentada, mas o desleixe familiar, o pacto talvez firmado entre muitas famílias, da garantia dos diretos básicos da cidadania, nunca se ouvira comentar, e as conseqüências desse não reconhecimento de “ser” humano, estampam-se no abrir-fechar das janelas da sociedade.
Tudo obedece a uma seqüência de rapidez. Ela anda, passa, olha, para, inventa o seu discurso, pede, recebe, junta, conta...e na mesma rapidez corre ao “abrigo” a quem entrega sem mais delongas o apurado de todo o dia, e consome, sem palavras “o que lhe fará a cabeça”. A partir daí começa mais uma noite em sua vida, em que a tranquilidade do sono de muitos, é permutada pela situação deplorável que ela se entrega no dia-a-dia.
É chegada a hora, em que para alguém que tenha uma vida normal, o ato de por a mesa, é sagrado. Para a Menina, a própria inexistência da mesa a faz incerta da comida. Chegando a casa rústica, cuja estrutura física é castigada pela deteriorização do tempo, bate-lhe a fome na barriga franzida pelo bem-estar efêmero proporcionado através da droga, de todas, comprovada a mais destrutível e que causa dependência em menos tempo.
Corre no desespero da fome, a Menina a investigar nas panelas, jogadas aos cantos da casa, a procurar algum resto de comida, e nos sacos plásticos presos a pregos nas paredes, um pedaço de pão qualquer, para saciar a inanição declarada pelo seu corpo. Tentativa frustrada, nada encontrou, e nutrida pelo instinto humano de sobrevivência, ela parte em busca de outras possibilidades de conseguir alimento.
Ao sair de casa, é surpreendida pelo pai, homem rude e tosco, que nunca lhe dera a devida atenção, e ai cabe-nos a reflexão da responsabilidade paternal que vai além do sustento da casa. Sem meias palavras o pai a expulsa de si, tachando-a de “drogada”, “vadia” e inúmeras palavras depreciativas, nada cabíveis ao estado em que se encontrava. Ela também revida, e trata-o no mesmo tom. Sai caminhando e olhando para trás, deixando marcas do conflito entre os dois, e segue seu doloroso caminho, a mendigar, dessa vez, tendo por prioridade, comida de qualquer tipo, mas se lhe aparecer a oportunidade de pedir dinheiro, assim também a fará.
Percorre caminhos, já lhes conhecido, e se chega a restaurantes, lanchonetes e outros pedindo para comer. Até lhe dão. Uns a olham com olhares melindrosos, outros piedosos, mas lhe dão. Por ali mesmo na sombra de uma árvore ou nas calçadas das casas, ela come desesperadamente o que lhe fora dado. Os transeuntes observam-na, uns discretos, outros fixam o olhar na tentativa de constatar o que a visão já lhes concede. Uma senhora de blusa branca e saia jeans a percebe, e de súbito aproxima-se, enquanto que em seu pensamento leva a convicção absurda: “Meu Deus, com tanta comida, pessoas ainda passam fome”. Antes mesmo dos últimos passos que aproximaria a senhora da Menina, ela levanta-se depressa, com um sorriso interno e desconfiado, e de repente traz a sua memória a vontade de dividir com a sua mãe o pouco que restara do que havia conseguido. Abraça as marmitas envoltas em sacos plásticos, e percorre o mesmo caminho de volta à procura da mãe, outra que leva a vida na mesma condição, escrava do crack.
Ao chegar à sua comunidade, de longe ela avista a sua genitora, que lhe emite um grito perguntando: “-Conseguiu alguma coisa?”. Ela emudecida, apenas caminha fazendo gestos, como quem pede para esperar que chegue próxima, e ainda, para manter a calma. A mãe tem as mesmas características físicas da cria, corpo franzino, esquelético completamente definhado. A mulher mãe, insiste e pede pressa aparentando está drogada. A Menina aproxima-se e estende a mão, quase invisível. O saco contendo ainda um pouco de comida, agrada a mulher que sorrir e logo procura o rumo de casa, mas é congestionada pelas palavras da filha: “-O maldito está lá. Me colocou pra correr, tenho certeza que ele ainda está lá. É melhor sentar e comer por aqui mesmo”.
As duas caminham para a sombra da velha e distinta árvore típica daquele local, a algaroba, acolhedora e confidente de todas as noites. Comendo em ritmo acelerado, a mãe é surpreendida pela filha que, apalpando a cintura por cima da roupa suja e rasgada, encontra um saquinho em que depositara algumas moedas mendigadas a estranhos, e já convida a mãe para juntas, consumir o crack. A mãe esquece até da fome que lhe acompanhara por quase todo o dia, e joga a marmita no pé da árvore, levantando-se e seguindo mais uma vez para o doloroso caminho sem volta, o caminho das drogas.
A noite chega. Caia a chuva lentamente como véu a recobrir o ar, e confundir a paisagem normal. De longe a Menina avista um homem, a quem ela já se prepara para entregar seu corpo e ser usada sexualmente, mais uma forma de obter a droga e insaciar sua vontade alucinante. Combinam o local, driblando a chuva. Tocada pelo frio, ainda assim entrega-se porque a sua sanidade ora fora trocada pelo consumo do crack. Alguns minutos depois, ela retorna, e logo é questionada pela mãe sobre o local onde estava. Ela a responde apenas apontando, e com a mesma mão saca para fora o dinheiro conseguido. A mãe não mais a questiona, e emudece todas as suas perguntas, pois para ela todas haviam sido respondidas, e nada além da droga a importava mais.
Assim é a vida, ou subvida da Menina que segue sem mesmo perceber a sua evolução humana, de menina para mulher. Detalhes como esse passam desapercebidos. Escravizada pela droga, lançada ao mundo cruel, ela sobrevive, nada vive, apenas cumpre o seu doloroso destino de desaparecer por entre a aparência de quem nada ver, sente ou escuta. Nenhuma dessas percepções lhe é possível, pois ela nem mesmo as conhece, já ouviu falar, mas apenas ouviu não lhe foi possível perceber, porque sua vida de menina corrompida pelo o fracasso familiar, obrigou-se a desliga-se de qualquer valor moral, qualquer sentimento de amor a sua própria existência.
Há quem diga, por exemplo, que o fracasso dessa vida, esteja estritamente ligado a concepção de família, mas é completamente diferente, existem entrelinhas cruciais que a levaram ao lugar em que chegou.
Passam-se os dias, as horas e o tempo. O relógio dos apressados corre no desespero de cumprir tarefas e ostentar mais uma medalha, enquanto que a Menina realiza apenas a sua rotina na construção falível do seu fim.
É possível perceber, e para isso não precisa que alguém seja especialista no assunto, que a dimensão social da destruição de muitas vidas é ensurdecedora, ainda que para alguém sequer soe como um simples assovio. Quantas, inúmeras são as meninas, meninos, mulheres e homens que no passar do calendário aos nossos olhos, entregam-se de corpo e alma ao mundo sórdido das drogas.
A Menina nunca mais será a mesma, talvez nem ela mesma saiba quem ela foi ou é, e com o peito avessado pela ilusão destruidora segue em busca, não de explicações, mas de resolver-se com o crack.
Já é dia. Lá se vai a menina, com a única certeza, sentir, sentir e sentir as alucinações que devoram sua mente. Ela só não tem a certeza de até quando irá sentir.
Rônet Alves de Matos
Aracati-CE, madrugada de 21 de abril de 2010.