CASAL EM NOVO ESTILO

(NESTE CONTO, TENTO DESCREVER UMA CENA FANTÁSTICA DO COTIDIANO, OU O COTIDIANO FANTÁSTICO NA VIDA MIÚDA QUE ENFRENTAMOS, OU VIVEMOS)

Estava sempre às voltas com o fazer doméstico, preocupada que era com as mazelas do pouco tempo em que ele se esbaldava na poltrona, controle remoto na mão, zapeando desatinado pela mediocridade digital. Mas era seu direito, depois de um dia estafante, remoendo as contas do chefe, os passos desenfreados dos clientes, os argumentos insossos dos colegas. Era seu direito também, agitar-se no emaranhado de notícias e artigos interessantes no jornal assinado pelo fim de semana. Não que se lambuzasse assim, de qualquer jeito, na chafurdice que via de regra, embotava os sentimentos mais puros, atirando tudo e a todos no mar de lama, de acordo com as prioridades do editor. Não, relegava-os a segundo plano. Tinha consigo que a beleza das leituras estavam no que se encontrava nos cadernos, descartando as críticas das artes plásticas, cinema, música ou literatura, podia-se enveredar em caminhos ousados, às vezes, através de alguns incansáveis fazedores de estruturas renovadas, arejadas à brisa da primavera, desprovidos dos modelos da mídia mercadológica. Até quando? Mas ainda havia flores que nasciam entre pedras, tais como aquela do Drumond. No asfalto? Rompeu o asfalto, o tédio, o nojo, o ódio. Mas ela sempre tão metódica, minúcias rodeavam sua cabeça enlaçando nos cabelos loiros que emolduravam o rosto harmônico, a boca perfeita, os olhos azuis, de um azul aguado, quase mar. Por pouco, não escorrega e se transforma em algo que não é mais mar, nem azul, uma coisa gosmenta e sem vida, que se espalha na poeira dos móveis, no brilho ofuscado do espelho, no respingo da chuva pintando pontos disformes na vidraça. Pudera conversar consigo estes detalhes que fazem toda a diferença: enquanto ela dá brilho na porcelana, no bisotê, no esmalte da cômoda, ele lustra a maçã, o respingo nos óculos, talvez até a lâmpada de Aladim. Quem sabe um gênio participa de suas vidas e as transforma numa coisa parelha, parceira, com metas semelhantes. Mas tudo que toca, tem vida, tem seiva, tem visão apimentada das leituras e do sonho, tem imaginação. Por que acinzentar o cotidiano, tentando padronizar o que já é rotina?

Mas ele a observa do outro lado da mesa, esquivando-se entre o balcão da pia e o fogão. Estava mais linda hoje, enfeitada num avental de rendas, que em sua visão onírica, trazia um quê de sensualidade. Não que gostasse destes fetiches, mulheres vestidas de enfermeira, aeromoça, mulher gato, o diabo a quatro. Não era dado a estas imaginações rocambolescas. Também não tinha o menor preconceito, que cada um utilizasse os instrumentos que melhor lhe conviessem. Não era o seu caso. Aos quarenta anos, nunca imaginara um tipo de coisa semelhante. Mas não parava de pensar no assunto. A mulher sempre intolerante na organização da casa, hoje, lhe causava um tênue ternura, o que era bom, pois o romance estava esfriando. Puxou o jornal para o lado, descansou os óculos sobre a mesa e deteve-se examinando-a. Seu gingado entre uma atividade e outra, nada semelhante a do general que comandava a casa. Ao contrário, era cadenciado, quente, gostoso e ele até ouvia uma melodia, quase sincopada, dando o tempo adequado ao ruído da saia, que ora prendia no braço da cadeira rivalizando com o avental que esvoaçava, sem rumo, enquanto circulava pela mesa. Sobressaía um aroma suave de jasmim, que se disseminava pela peça, inebriando as narinas e a mente. Coração assaltado, passou a tamborilar os dedos na mesa, tentando chamar sua atenção. Vez por outra, ela se voltava, enquanto arrumava o assado na forma, e para sua surpresa, ao invés de pedir-lhe ajuda para segurar a forma, sorria afável e fazia da atividade, um leve gesto de abandono, deixando a carne a aprontar-se, como se não precisasse mais nada, do que o sopro dos anjos. Depois, pronta a tarefa, ocupou-se no cortar incessante de tomates, cenouras, pimentões e até um abacaxi e simultaneamente o descascou com a mais afinada diligência. Executava tudo com tanta eficiência e rapidez, que ele tinha a impressão que uma máquina estranha comandava seus pensamentos. Um robô ou um etê, quem sabe. Porém, nada havia de grotesco em seus gestos: eram plenos de suavidade e aceitação, como se meditasse em cada corte mais profundo, mais tenso, transformando o frescor das cenouras em pequenas molduras, mimos jogados na panela entre legumes ou raízes, convivendo em plena harmonia. Tal como ela, em paz. Quase absoluta. Zen. Não fosse o olhar lânguido e ao mesmo tempo obsceno que o fitou, deixando-o desconcertado. Após terminar a refeição, retirou uma garrafa Romanée-Contide a trouxe na direção dele. Embasbacado ficou pela sobriedade do vinho, por que não um da serra? Abriu-a, juntou duas taças e as serviu, com carinho. Aproximou-se e o beijou demoradamente. Sentiu a proximidade de seu corpo, o cheiro de jasmim mais forte, a boca sedenta procurando a sua e não resistiu a tanto carinho e paixão. Beijou-a com sofreguidão, aproximando em seguida sua boca dos seios, molhando-os na saliva que ainda corria de sua boca surpresa, enrugando os jornais com os cotovelos, tentando levantar-se para tê-la nos braços e esquecer que um dia ela fora intolerante e quase má. Amava-a muito e agora era outra mulher, uma mulher que parecia sair das páginas das histórias de um folhetim antigo, desses que se compra nas bancas de jornais e as mulheres são tão dóceis e passivas. Mas ela parecia mais forte do que de costume, tanto que o obrigou a continuar na mesma posição, tomando as iniciativas. Abriu-lhe a camisa, destravando cáseas, arrancando botões, enquanto beijava o peito peludo e um tanto magro, do qual tinha até algum constrangimento. Ela desconsiderava qualquer negativa, naquele momento. Retirou a camisa, bruscamente, mostrando seus braços que já não eram tão musculosos como antigamente, agora acenando um adeus medíocre na região das axilas, resultado de se acomodar na poltrona, sedentário e nunca pegar peso. Sabia que precisava malhar, ela não devia desnudá-lo daquela maneira agressiva. Mas de todo modo, sentia-se um novo homem, pois estava a frente da mulher que sempre sonhara, que fazia a comida com carinho e agilidade, que ajeitava a cozinha para deixá-lo à vontade, que servia o vinho e para rematar consumia seus hormônios. Era a mulher idealizada, embora nunca a tivesse visto naquela perfomance. A esposa, ainda mais decidida, levantou-o num salto, sungando-lhe as calças até doer-lhe os testículos. Tentou perguntar se o eflúvio amoroso se tratava de uma técnica nova, pois por mais que lutasse contra seus preconceitos, seu jeito ia de encontro ao seus princípios, sentia-se usado e até assediado na hora errada! Mas aquietou-se. Ela cobria-lhe a boca, com doçura, impedindo-o de reagir. Por fim, abriu com energia voraz, o zíper da calça, o que o fez estremecer, temendo que ela prendesse de repente, o que de desprevenido havia, sem ser consultado. Foi rápida, quase profissional, puxando as calças aos pés, enrolando-as nos tornozelos que sustentavam pernas finas e ossudas, cheias de pelos e cicatrizes, frutos de antigas peladas nos fins de semana. Saudosos fins de semana! Achou-se ridículo nas cuecas samba canção estampadas de seda; parece que aumentavam ainda mais a sua fragilidade, ante aquela mulher poderosa. Pois, foi no exato momento em que ela, ouriçada, desceu as cuecas, com firmeza nas mãos, que ele saltou, num ímpeto. Aí já era demais, aquilo não era nada erótico, quando muito um atestado de insubordinação feminina! Todavia, chegou o momento crucial e ele não se fez de rogado, ao contrário, deixou-se acariciar por aquelas mãos sedosas e macias, com cheiro de cenoura tenra e pimentão cortado. Mãos aveludas, com o dom de esticar o que estava encolhido. Então sorriu de prazer, mas foi por pouco tempo. Sentiu uma espécie de desafio interior, alguma coisa lhe indicava que algo estava errado, porque as mãos agora passeavam por seu corpo, suas coxas, suas costas, seu pescoço e não eram mais suaves, nem deslizavam com carinho pela nuca, nem sentia mais o aroma de jasmim que se exalava do corpo da mulher. Nem a boca que lhe beijava os mamilos produziam qualquer sensação gratificante. Era um ato mecânico, que o compelia com força, a ponto de formar pequenos pontos roxos, como beliscões. Além disso, um cheiro de borracha, látex ou qualquer coisa parecia desandava de seu corpo e seus olhos se fixavam sem piscar um músculo e seus cabelos pareciam de fibra, e sua boca, agora mordia sem parar e suas intenções não pareciam nada com as de uma mulher apaixonada e cheia de tesão. Temia que mudasse de estratégia e misturasse as coisas, e pensasse que ele era a fêmea e ela o macho. Foi aí que a empurrou, mas foi sustentado por uma força extraordinária, brutal, acompanhando um olhar patético que proferia centenas de palavras e expressões de ordem, muito mais do que costumava, quando não passava de um general. Foi ali que a viu, junto a si, tentando seduzi-lo, fazendo propostas das quais evitava por puro pudor, a sua bela esposa loura se transformado numa boneca inflável. Ficou desorientado, alucinado, perdido. Será que era projeção da mídia mercadológica vendendo bens que ele não precisava? Seria esta exacerbação absurda do sexo pelo sexo, sem qualquer sintoma de carinho ou afeto, apenas a utilização de mecanismos para se chegar ao orgasmo a qualquer preço, mesmo que para isso se pague uma fortuna? Ou seria uma vingança? Tudo isso indagou, sem obter resposta, apenas uma postura mais erótica acenava do ela era capaz. Ela queria se vingar dele, por isso o seduzira daquela maneira, ele que jamais pensara em brincar com algum daqueles fetiches. Então teve uma idéia, que resultava numa espécie de vingança. Ceder aos impulsos, disputar o espaço parelho entre o macho e a fêmea, mesmo que de borracha, veriam quem teria mais gás, até onde chegariam. Abraçou-a com força, despindo-lhe o avental e a saia falsa que usava apenas para iludi-lo, empurrando-a, desajeitado para debaixo da mesa, arrastando-a e sendo arrastado, de uma maneira tão insólita, que até duvidava se aquilo era sexo. O cheiro de látex, agora misturado com chiclete dava um ar um tanto infantil ao enlace. Então, joguei o seu corpo nu sobre o dela, enlaçou-a com suas pernas magras, mas com vigor, e a beijou desmedido, impelindo a sua cabeça para o solo, percebendo que ela usava do mesmo expediente, tentando submetê-lo. Era uma luta renhida. Entretanto, aquele clima bélico produzia um erotismo vigoroso, que se apoderou de tal forma, que nunca imaginou que desfrutaria de tanto prazer na relação com uma boneca inflável, que diga-se de passagem, também era a sua mulher, loura, bonita, suave e também autoritária, mandona; um general. Mas o jogo o seduzia mais e mais e finalmente seu sexo, aos poucos, se completava e ele sentia-se o homem mais feliz do mundo, um verdadeiro privilegiado, tanto que a ereção foi natural e fluiu de tal forma a alojar-se numa região quente e palpitante, quase amortecendo de prazer, num vai-e-vem enérgico que se antecipava a qualquer movimento induzido. Era o sexo dos deuses. Rolaram pelo solo, se afastando dos pés da mesa que machucavam seus quadris e ultrapassaram a cozinha, sentindo os aromas dos ingredientes sacolejando na panela de pressão, o esfolar da grelha do forno na carne tenra e apetitosa. Estavam assim, no jubilo de corpos integrados e felizes e sentiu, que pela primeira vez, há muitos anos, teria um orgasmo daqueles que se tem, quando adolescente, quando a pulsão é extrema e a capacidade é inesgotável, com a vantagem da plenitude do tempo expedido, sem pressa, sem medo, sem ansiedade: puro gozo. E quando o clímax se aproximava, tanto para ele, quanto para ela, um momento em que os céus se transformam, alinhando as cores, com matizes densos, chegando a dourado depois do azul, os mares se agigantam em ondas, encapelando-as, espumando a areia, salgando a terra e os ventos agitam bandeiras e lenços, dão vivas a vida e se perpetuam em acenos de louvor. Foi neste momento tão esperado que sentiu as mãos dela em suas costas, deslizando devagar para chegar a um ponto desconhecido, o qual segurava com energia renovada e pensei aprenderia outra maneira de ativar o orgasmo e aceitou, confiante. Suas mãos, porém, eram frias e vibrantes e se entrelaçavam vigorosas em sua coluna. Então, ouviu um grito de prazer tão forte que lhe doeu os tímpanos: era o dela, no momento em sentiu-se voar em direção ao teto, batendo nas paredes, queimando-se na panela de pressão, que borbulhava por fora da tampa, e voando pela janela, ficava pendurado na vidraça, espichado, ofegante, olhos se moldando no parapeito, boca esticada como uma lesma sem casulo, que se esgueira pelas paredes úmidas, e braços, pernas, e tronco espichado acompanhando o desenho da parede. Tentou falar. e sua voz não saia, a língua presa, submissa, embora seus ouvidos que se desfaziam, esparramando-se em gotas pela sala, ainda ouviram a frase de puro gozo que ela destilava — Finalmente consegui! Retirei a válvula dele — e uma risada autoritária de general ainda ecoou no seu ouvido esquerdo que se dilacerava num prego.

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 21/04/2010
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