ASSIM MORREU ZENEIDE
A noite chegou preguiçosa, atrasada, depois de um
dia que não queria passar.
As estrelas não apareceram logo. As nuvens espessas
de pó e de fuligens desejaram poupá-las das imagens
grotescas e dos guinchados do padre, exigindo dos
guardas a retirada do corpo das escadarias.
Os dois policiais, cada um segurando em um dos pés,
arrastaram o defunto até um canto retirado do gramado.
Cobriram com uma lona escura. Acreditavam que
naquele caso a polícia técnica não os repreenderia pela
remoção. Algumas pessoas aguardaram por mais de
uma hora na esperança de que os pivetes fossem
trazidos ao local pelas orelhas. Mas os próprios
guardas lhes disseram que de nada adiantaria prendê-
los. Assim, aos poucos os curiosos se dispersaram.
Zeneide morreu quando saia da igreja, nem soube que
o Senhor a veio aliviar por intermédio dos pivetes. Nem
eles desejavam atirar nela. Aconteceu. E foi somente
isso, quer dizer, foi uma obra do destino, de cujos
caprichosos desenhos ninguém está livre.
Foi menina danada, a Zeneide.
Arredia, calada, impossível de amestrar. Cresceu no
barraco, nas imediações. Com doze anos de idade ela
era dada a seguir as irmãs de caridade que por lá
faziam suas rondas distribuindo alimentos, remédios,
conselhos e santinhos. Ansiava então pela vinda do
pai, ao cair da tarde, sentando-se no chão para acariciar
as canelas dele. Parecia enamorada. O pai fazia
questão de retribuir a atenção. Punha-a para dormir e
não saia do quarto enquanto ela não estivesse
dormindo a sono solto.
Com o tempo ele começou a se esquecer daquele
apego da menina. Então, um dia, ela criou coragem e
pediu a uma das freiras para ver como era a
embalagem dos preservativos. A freira desconfiou, mas
considerou melhor estimular a prevenção.
Alguns dias depois o homem que vendia revistas lhe
disse em segredo que aquilo não era nem bom nem
necessário. E que podia revender dando-lhe alguns
trocados. Mas para isso ela precisava aprender a tirar
das freiras uma ou duas fieiras completas.
Não era de juntar-se às pessoas, não era de brincar
com os meninos que corriam pelas ruas enlameadas.
Eles corriam girando aqueles arcos de barris, tocando-
os com uma lasca de madeira escura. Não era de
brincar com as meninas que batizavam bonecas, ou
se expunham ao final da tarde sentadas sobre a guarda
da ponte e pondo a língua para os homens que
passavam cansados, elogiando-as, formulando
convites para carinhos na cama.
Não! Ela não se juntava a ninguém, preferindo olhar,
distraída, para os cães que talvez superassem em
número aos humanos que por ali consciente ou
inconscientemente cumpriam os dias que a generosa
vida lhes riscara nas estrelas. Tardes de sol se pondo
avermelhado, avermelhando os telhados de zinco, os
terreiros e as ruas de terra nua cortadas por esgoto a
céu aberto. Era o pó que avermelhava o sol, ou era o
sol vermelho que coloria a poluição, pondo franjas
escarlates na fumaça negra das chaminés fabris?
O pai já havia desaparecido quando Zeneide começou
a inchar. O homem da banca passara a ser defunto
por obra de uma bala perdida. Os meninos riam dela
e abaixavam as calças para ela, insultando-a em
público. Entre as meninas havia sussurros e as mais
ousadas apontavam-na com o dedo em riste,
chamando-a de santinha de bordel.
Quando a criança nasceu, veio ao mundo deficiente.
Os pezinhos tortos, as perninhas frágeis, sendo uma
visivelmente menor que a outra.
Zeneide chorou durante quase todo o primeiro ano.
Com a criança no colo, ou acavalada em seu quadril,
iniciou as novenas implorando a todos os santos pela
cura milagrosa. A criança não andou antes do segundo
ano. Nunca andaria como as outras crianças.
Praticamente arrastava-se.
No início da noite, enquanto a menina dormia, Zeneide
ia à igreja, implorar aos santos uma intervenção junto
ao destino. Queria que a filha pudesse pelo menos
andar, mesmo que continuassem tortos os pezinhos.
Bastava corrigir a atrofia dos músculos.
Ia à igreja no início da noite a conselho do padre. Ele
queria poupá-la dos falatórios das carolas na hora da
reza do terço. Eram pias demais as carolas. Elas
acreditavam que a presença de Zeneide na igreja, na
hora da reza, era um insulto ao Santíssimo, a fonte do
amor e da misericórdia. E não era conveniente que
ela continuasse a vir à sacristia. O padre era o pastor
de todas as almas e não podia se dedicar a uma só
ovelha. Tanto mais uma ovelhinha que vivia perdendo
coisas por ali.
Por ser cabeça dura Zeneide nunca entendeu o que o
padre quis dizer com aquele ‘perdendo coisas por ali’.
Mas o padre era inteligente e sabia o quanto fora
exposto ao constrangimento perante a freira. Sentira-
se instado a explicar o aparecimento da embalagem
contendo uma camisinha entre seus pertences. Tinha
a marca de distribuição feita pelas freiras. Zeneide a
deixara cair na nave do templo?
Assim morreu Zeneide.
Alguém há de contar como sobreviveu a filha, que ficou
sozinha aos dois anos de idade em nosso mundo tão
pleno de amor.