CONTOS PARISIENSE I - Café de Flore

Todas as manhãs antes de ir para o Museu, Marie passava no Café de Flore ¹ , onde rigorosamente era servida – e observada – por Antônio, o garçom brasileiro.

Antônio que já servira não se sabe quantos cafés aos franceses, naquela ou noutra “casa” que trabalhara, nunca havia se deparado com nada igual.

Enquanto preparava a bandeja de prata, Antônio ficava a observar intrigado, pela parede de vidro que o separava do salão. Assim foram as manhãs de Antonio e Marie neste Café parisiense nos idos de 1970.

Recordo-me ainda daquele novembro distante e daquelas manhãs tão iguais, exceto esta quando o garçom “quase” desvendou o ritual de Marie.

Marie sentou-se na mesa próxima à janela com vista para o boulevard, Antônio sempre a recebia com o seu café. Como de costume cumprimentou-a e ofereceu-lhe açúcar:

- Bonjour Madame, vous-le-voux du sucre?

- Deux pièces, s’il vous plait.

Marie tomou seus primeiros goles sem deixar de lado Simone de Beauvoir.

O garçom continuou a observá-la, aguardando o segundo pedido.

Com o gestual de uma das mãos Marie solicitou mais um café. Novamente Antônio se aproximou para servi-la. Desta vez não mais perguntou. Duas pedras de açúcar e sem trocar palavra recolheu a bandeja anterior. Marie agradeceu ainda sem tirar os olhos do livro:

- Merci.

Alguns minutos depois, apenas com um breve olhar, Marie fez um gesto já entendido por Antônio.

O garçom preparou minuciosamente a bandeja de prata. A casa trabalhava com xícaras coloridas, mas o terceiro café de Marie – conforme orientação do maitre – deveria ser rigorosamente, servido em xícara branca com a boca maior que o fundo. Pó recentemente moído, bule com água fervendo, açúcar refinado, finalmente um rechô para que ela mesma preparasse sua bebida. Estava pronta a bandeja.

Tendo posto à mesa, com o esmero de sempre, Antônio afastou-se observando atentamente cada detalhe. Ele voltou às pressas com o copo de água e sal que houvera esquecido. Marie agradeceu, olhando-o nos olhos, como quem revelasse a importância de tal copo:

-Merci.

Com um breve aceno de cabeça, uma das mãos para trás e curvando-se para frente o garçom deixou-a sós.

Marie ajeitou o copo com água e sal sobre a mesa e iniciou o ritual ²: pôs no bule uma colher de pó seguindo-se de outra de açúcar. Ferveu a mistura com a ajuda do rechô, e após um breve descanso efetuou uma nova fervura. Serviu-se na xícara branca e aguardou que esfriasse. Depois de totalmente frio, ela tomou o líquido lentamente, deliciando-se daquela bebida forte e ainda mais densa por não ter sido coada.

Terminando de tomar o café Marie cobriu a xícara com um pires e num rápido movimento girou-o para baixo. Não perdeu a concentração. Nada existia a sua volta, nem o burburinho do café a distraia.

Antônio não conseguia deixar de observar àquela cena repetida todas as manhãs. Fingindo fazer outras coisas, através da parede de vidro, não tirava os olhos daquela mulher linda, perfumada e, a cada dia, mais misteriosa.

Também Antônio nunca percebeu ser por mim observado. Por trás do Le Monde de todas as manhãs, havia mais histórias que notícias. E eu as degustava.

Marie guardou o livro arrumando-se para sair. Pagou a conta, antes de levantar-se tirando o pires de cima da xícara, segurou-a com as duas mãos e com olhar fixo no interior virou-a lentamente no sentido horário. Observando atentamente, parecia conversar com aquele borrão de café. Examinou um pouco mais e desta vez sorriu, diferentemente das outras. Levantou-se e saiu com ar de satisfeita e feliz.

Esquecera de lavar a xícara com a mistura de água e sal como de costume.

Enquanto recolhia à mesa, Antônio mais interrogativo que nunca, percebeu no fundo da xícara um desenho. Uma estrela formada pelo borrão. Examinou atentamente procurando, ainda assim não encontrou respostas.

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1 - Quando for a Paris visite:

Café de Flore – Paris

172 Boulevard Saint-Germain

75006 Paris, France

01 45 48 55 26

2 – A cafeomancia é uma prática de origem árabe usada para adivinhar o futuro através da leitura da borra do café, é um excelente oráculo para desenvolver a intuição, facilitando a comunicação espiritual.