O ABRIGO AO LARÁPIO

O ABRIGO AO LARÁPIO

Nos primeiros calores da nova estação sinais da primavera que se aproximava, começando a descer do norte onde havia ficado guardada durante o inverno, empurrando para o sul a estação fria que havia desfeito toda a folhagem do Ipê, obrigando-o a guardar dentro de si toda sua força que agora explodia em milhares de flores amarelas que caiam em grande número, formando um imenso tapete amarelo sob estas árvores, que eram inúmeras nessa praça da pequena cidade, praça esta que era circundada pela Prefeitura Municipal um cinema, um restaurante, claro, uma igreja e um hotel.

Este último local onde se hospedavam não só os viajantes que estavam na cidade mas também os que cruzavam de vilarejos menores ainda, que se desdobravam pela região visto que a cidade apesar de pequena era o pólo regional de distritos ainda menores. E esse reduzido povoado era bem estruturado, com as ruas centrais pavimentadas e também muito limpas com lixeiras bem distribuídas e povo ordeiro que delas fazia uso tudo supervisionado de perto pelos passeios constantes do senhor alcaide mor que eventualmente caminhava pela praça a pretexto de passeio, mas com muito mais propósito de fiscalização.

Pois nesse hotel, acompanhe-me o leitor, no primeiro andar funcionava uma loja também de propriedade dos donos do estabelecimento hoteleiro e nos outros quatro andares funcionava essa hospedaria, com escadas laterais que conduziam até o segundo andar onde funcionava a portaria que era prontamente atendida pelos jovens que ali trabalhavam e que sempre solícitos tomavam as bagagens dos hóspedes para lhes encaminhar aos quartos. Sempre havia disponível na portaria chimarrão para os hóspedes e uma bandeja com xícaras onde era servido o chá de uma garrafa térmica que ficava na mesma bandeja, as xícaras já usadas eram deixadas com a boca para cima as ainda não usadas com a boca para baixo eventualmente um funcionário de nome João, alegre, bonachão e que preferia resolver tudo pelo lado mais fácil e do atalho laboral ao verificar que ninguém observava virava novamente as xícaras usadas para que ficassem como se ainda não tivessem sido usadas e assim não as precisava ir a cozinha lavá-las. Mas isto é apenas um detalhe que não influi na história que vamos contar que sucedeu nesse hotel dessa cidadezinha.

Nesse hotel havia um gerente, homem culto, leitor assíduo de periódico da capital que diariamente chegava até a pequena urbe e que seu maior orgulho era nunca ter sido passado para trás por nenhum hóspede, pois nesse meio de proprietários e administradores de hotéis sempre são suscetíveis a algum golpe financeiro por parte de falsos turistas ou falsos empresários que se hospedam e usam alguma artimanha para não pagar a conta, pois o maior trunfo desse homem era conhecer um salafrário pelo andar como ele mesmo frisava e era esse seu maior orgulho e vez ou outra quando um amigo antigo hóspede dos que normalmente todo mês ficavam dois ou três dias nesse hotel para fazer a venda no comércio local, pois na maioria das vezes eram vendedores viajantes, pedia para pagar na próxima visita alegando alguma dificuldade financeira, imediatamente tinha seu pleito negado pelo gerente que se dizia incapaz de fazer semelhante concessão por ser vedado pelos proprietários do estabelecimento em cláusula contratual por ocasião de sua contratação.

Ocorre que nesses dias em que a calçada da frente do hotel estava como que pintada de amarelo pela quantidade imensa de flores jogadas do ipê. Apareceu um hóspede novo, que nunca havia se hospedado antes, em carro bonito do ano ou de no máximo dois anos que imediatamente o acomodou na garagem que ficava nos fundos do hotel entrando pelo lado da loja já referida e muito bem escondido pois era embaixo dos pavimentos do hotel e murada na volta.

Pois esse hóspede novo imediatamente despertou a curiosidade dos demais que não o viam com maneiras de quem realmente fosse um vendedor viajante, indagado a respeito disse trabalhar em um órgão do governo federal e na condição de funcionário público teria de preservar sigilo sobre sua estada nessa cidade e sua verdadeira missão. Atividades que os hóspedes confirmaram com o porteiro João - o que virava as xícaras - que realmente essa era a versão do homem, que também achava estranho mas que havia caído este nas graças do gerente que em tudo acreditava.

E quando no final da tarde se reuniam os hóspedes da volta da atividade diária de cada um no hall do hotel para tomar um chá ou um chimarrão e o hóspede misterioso não estava por perto faziam conjecturas de quem seria a figura e qual seria a importante missão, um achando tratar-se de um agente da CIA outro achando que fazia estudos secretos sobre o solo da região em que suspeitava que houvessem grandes reservas petrolíferas e esses estudos teriam de ser sigilosos para que não caíssem nos ouvidos das empresas privadas de prospecção, outro achando que era fiscal do imposto de renda e comparava os gastos e o modo de vida de determinado cidadão com sua declaração para o fisco, enfim as mais esdrúxulas atividades eram imaginadas pelos hóspedes mas no fundo todos acreditando também que sim, que poderia ser apenas mais um golpista aplicando mentiras e se surpreendiam como o gerente se deixava envolver, sobretudo depois do funcionário João - o que virava as xícaras - contar que o homem não havia dado garantia alguma, se hospedando para pagar na saída e como o hotel não tinha restaurante nem serviço de quarto a pedido do estranho o gerente autorizou que o hotel comprasse refeição ou lanches no restaurante da praça e trouxesse ao hóspede que a pretexto disso ou daquilo não saía muito do quarto. Isto deixou mais admirados ainda os hóspedes, realmente o gerente devia de ter algum outro conhecimento fora do alcance deles para agir dessa maneira, devia de alguma forma conhecer o homem do contrário não faria tamanhas concessões, correndo grandes riscos, mas enfim dessa forma estava sendo feito e dessa forma corriam os dias e quando alguém chegava para se hospedar e já sabedor do fato, imediatamente perguntava pelo hóspede misterioso, pois despertara a curiosidade de todos e com o decurso dos dias o fato foi caindo na normalidade, só a conta daquele quarto e a despesa no restaurante ia subindo de forma geométrica pois que inclusive algum vinho de boa safra já estava acompanhando a refeição do hóspede.

Mas quando quase todas as flores do Ipê estavam no chão e os primeiros brotos verdes começavam a emergir dos galhos, o porteiro João - o que virava xícaras - fanático que era por uma fezinha em jogo do bicho não deixava de jogar todo santo dia e o Pedro da Mula apelido do bicheiro que todo dia passava no hotel para recolher o jogo do João pois este além de fazer o seu também já recolhia o jogo de algum hóspede e chegando o Pedro da Mula fez sua pergunta diária:

- E então João o que vai dar hoje?

O João disse ao Pedro que palpite certo daria macaco pois havia sonhado com um hóspede do hotel e foi olhar a placa do carro a qual era macaco e fez o jogo e de posse do jogo e da informação Pedro da Mula seguiu seu périplo de recolhimento de jogo onde incluía a delegacia de policia em que o escrivão jogava religiosamente apesar da tipificação de contravenção penal o dito jogo. E lá chegando, Pedro da Mula o escrivão pediu sugestão em que jogar ao que aquele falou do palpite do João do hotel e contou a história ao escrivão que então fez seu jogo. Mas além de jogador era também policial e seu sexto sentido lhe dizia já ter visto aquela placa em algum lugar e precisou fazer algumas consultas apenas nos arquivos que dispunha para saber de onde vinha e com mais algumas diligências pediu reforços e autorização para o delegado e com a imponência de uma grande operação adentrou ao recinto do hotel prendendo o hóspede misterioso que sorvia uma taça de cabernet no aconchego do seu quarto.

Sim, os hóspedes ficaram boquiabertos de saber que o homem na realidade era um assaltante famoso e que assaltara um banco na capital do Estado e se refugiara no hotel da pequena cidade até amainar a perseguição e iria continuar ali até quando a mentira estivesse colando, por isso não saia nem passeava no carro que era produto de furto e foram avisadas as delegacias do Estado por isso o escrivão lembrou da placa pois antes de pequeno contraventor era também policial.

Mas estupefato mesmo ficou o gerente do hotel, pois os proprietários iriam lhe cobrar essa vultosa soma em que já estava a hospedagem do homem. Mas o gerente em vingança queria cobrar do João - o que virava as xícaras - pois foi de um sonho seu que veio o número e se sonhou é por que dormiu e na portaria não era pago para dormir, ora pura maldade do gerente pois o João afirmou que sonhou quando dormia no seu momento de folga e não no sono do serviço.

Diniz Blaschke – Poa – junho/2009

Diniz Blaschke
Enviado por Diniz Blaschke em 13/04/2010
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