NA MARGEM ESQUERDA DO RIO URUGUAI

NA MARGEM ESQUERDA DO RIO URUGUAI

“ águas mansas, calmas

balançam o sarandi

ora aqui ora ali

ronronando vozes de almas”

Todos os grandes rios do planeta sempre foram ponto de fixação da população em suas margens. Inicialmente se valendo do meio de transporte, que antes das estradas de rodagens o faziam de barco e assim foram nascendo cidades sempre ás margens desses grandes rios. Com o Uruguai não foi diferente, rio dos Caracóis de lugares de grandes corredeiras e águas bravias, mas também de remansos de águas calmas de lugares rasos como praias ou também de poços com mais de cem metros de profundidade.

Rio de muito peixe, sobretudo piava e dourado, mas também pintado e surubi, este último vez ou outra era fisgado um com aproximadamente oitenta quilos, eram moradores de águas profundas, escuras, dos poços do rio onde a profundidade era maior.

Mas nessa margem esquerda do rio havia uma seqüência de pequenas casas onde moravam pescadores, se localizavam acima da barranca do rio, esta de aproximadamente seis metros e que protegia as casas das pequenas oscilações do nível do rio, pois que o Uruguai é um rio que nunca permanece dois dias com o mesmo nível ou está subindo ou baixando o nível da água e mesmo assim essas casas situadas na proteção dos seis metros de cima da barranca em algumas épocas do ano essas moradias eram atingidas por enchentes, eram tomadas pela água suja e barrenta das grandes enchentes pois o Uruguai sai da caixa a campo fora, como diziam os pescadores, pelo menos de seis a oito vezes por ano e em alguns casos se falava que alguma dessas cheias chegou a atingir a marca de vinte metros de altura, quando caia muita água em suas cabeceiras, isso coisa de mais de mil quilômetros de distância rio acima e quando isso acontecia os pescadores abandonavam suas cabanas e com seus pertences nas canoas buscavam a proteção da terra seca até que a enchente amainasse e o rio lhes entregasse novamente as cabanas que havia tomado, então reparos eram feitos e novamente era retomada a rotina dessa pequena vila de pescadores que eles denominavam Capela, mas que não sabiam ao certo a origem do nome, o motivo desse batismo, acreditando que por certo teria havido em tempos idos talvez muito antes do estabelecimento da vila de pescadores ali, uma capela, dessas que normalmente fazem para prestar homenagem a algum santo, até por que no mato havia alguns restos de construções que pareciam ser túmulos e com o passar dos anos terminando a capela ficou o nome que depois de fixado não tem como mudar não senhor, como afirmavam os pescadores. Gente simples de boa índole que por sua simplicidade e falta de conhecimento das letras a sociedade citadina inconscientemente os foi afastando para além da margem dessa sociedade, para a margem do rio, pois ali o fiscal da prefeitura não os alcança para cobrar o Imposto Predial e Territorial Urbano, na cidade pagavam taxa de água, aqui o rio provém, energia da cidade mesmo para duas lâmpadas e um rádio era cara para quem luta com parcos rendimentos, aqui na Capela não tem energia elétrica mas também não se precisa pagar por ela, né seu moço, explica o pescador.

Além disso, o rio lhes dá o peixe e esse fruto do rio é dinheiro a poucas remadas da capela eles chegam ao porto da cidade onde há comprador certo para qualquer quantidade de peixe, então é ter paciência, observar o rio e saber retirar dele sua sobrevivência.

Mas retirar o peixe da água não é uma tarefa fácil, desde os tempos bíblicos que o homem vem nessa luta. Vivem hoje na Capela cerca de quinze famílias, já foram mais, mas umas desistiram, por não conseguir retirar da água seu sustento, tinham construído cabanas e essas foram então abandonadas, pois esse povo construía cabanas rústicas com toras de madeira da mata ciliar do rio e madeira de mata de rio é irregular, ficavam assim bastante disformes e mal acabadas as cabanas dos pescadores, mas era a madeira disponível sem que para isso se precisasse pagar.

Numa tarde nessa comunidade da Capela em que um grupo de mulheres e crianças na margem do rio limpava uma penca de pintados, que havia saído no espinhel, iscado fundeado no remanso da ilha o mais certeiro lugar para pintado da Capela e apuravam o serviço pois precisavam levá-los ainda hoje a cidade pois não dispondo de recursos para gelar o peixe tinham de vender a produção todo o dia tão logo retirassem da água, salvo a parte que usavam em sua alimentação o que na sua totalidade também saia do rio Uruguai.

Pois bem, encostou junto a esse grupo um pequeno barco, desses que os pescadores usam e que costumam chamar chalana que uma pessoa usa dois remos para conduzi-lo a que eles chamam remos de voga e que assim atinge uma velocidade bem maior que com um remo apenas, esse barco vinha de baixo provavelmente subindo o rio com um homem na condução, muito velho, barba branca, mas forte ainda, que disse ao grupo ser pescador e pediu para ocupar uma das cabanas vazias, essas mulheres não lhe perguntaram como sabia da existência de cabanas vazias, talvez se tivessem refletido um pouco, mas como para pescador não se nega guarida na Capela, deixaram que ele se estabelecesse naquela mais distante rio acima e que não precisava grandes reparos, pois havia sido abandonada a pouco tempo e depois de abandonada ainda não fora atingida por nenhuma enchente, fato que mais danificava as moradias.. Nessa noite lhe ofereceram um ensopado de pati, que é um peixe de couro dos mais saborosos para comer na panela, já para fritar teria de ser peixe de escamas, segredam as mulheres dos pescadores, pois esse homem não deveria ter grandes mantimentos pensaram, viajando pelo rio talvez sem tempo para estender uma linha e tentar alguns peixes. Mas essas pessoas não conseguiam obter nenhuma resposta as muitas dúvidas que tinham sobre o repentino aparecimento do forasteiro a não ser estarem mais confusas ainda depois de conversarem com o homem, pois o lacônico pescador disse conhecer bem essas paragens, que a muitos anos havia ajudado a erguer ali a Capela. Mais não falou e o povo todo ficou a conjeturar sobre que homem seria aquele, que conhecia suas origens que eles próprios desconheciam, de onde haveria surgido, qual seria seu destino, agruparam-se a conversar, como um conselho de guerra, pois poderiam ter um inimigo no meio deles, sem saberem realmente quem era esse homem e agora doravante como os homens sairiam para o rio tranqüilos deixando suas mulheres e crianças na barranca com um desconhecido e cada um deles levantava uma hipótese, formulava uma teoria. Mas enfim a pescaria não poderia parar, era questão de sobrevivência e no outro dia cedo os homens saíram em suas canoas em direção a ilha, recorrer e repor as iscas no espinhel nessa ilha com essa correnteza de hoje levaria quase toda a manhã, pois sabiam avaliar a força da água, profundos conhecedores que eram do comportamento diário desse rio. Mas mesmo aprensivos depois de muitas recomendações e cuidados com os que em terra ficariam, partiram.

A tarde, no retorno da venda de peixe no porto da cidade os homens foram até a cabana do velho que cozinhava peixe, que deveria ter trazido consigo pois as mulheres não o viram sair da cabana em direção ao rio. Disse-lhes o velho que passara o dia arrumando umas linhas de pesca e reparando uns empates que é a extensão de metal que une o anzol a linha. E quando já saiam os homens para retornar as suas cabanas, dando-se por satisfeitos com a pesquisa e investigação, foram surpreendidos com um pedido do velho que mostrando uma linha grossa dessas que eles utilizavam para fazer espera fixas nos poços para pegar os grandes peixes, essa linha já estava com um anzol já iscado com um grande lambari, isca boa para peixe de escama, esse lambari fazia a volta do grande anzol fazendo com que o corpo do peixe tivesse o formato da haste de metal, teria saído de onde essa isca se o velho não fora ao rio, mas disse-lhes o velho, queria que um de vocês deixasse essa linha de espera no último galho de sarandi da ponta de pedra acima de onde está ancorado o meu barco e amanhã cedo gostaria que alguém me trouxesse o dourado que vai estar fisgado nesse anzol, pois me sinto fraco hoje e por isso não fui ao rio e teria dificuldade de carregar um peixe de oito quilos e dizendo aquilo pediu licença para deitar considerando que não havia passado bem o dia sentindo-se fraco e precisando de deitado descansar. A turma saiu discutindo sobre essas atitudes do velho, mas o verdadeiro alvoroço foi causado no outro dia cedo quando ao chegarem próximo ao galho de sarandi onde haviam atado a linha do velho notaram de longe que esse galho se movimentava como se realmente houvesse um peixe grande fisgado na linha e ao retirarem confirmaram suas suspeitas era um dourado imenso não precisavam de balança para confirmar mas sem dúvida nenhuma a experiência de quem lida com peso de peixe diariamente poderia com facilidade avaliar o peso desse em torno de oito quilos conforme a sentença do velho no dia anterior. Que mistério é esse? Que homem é esse? De onde haveria saído? Pois isso, mais do que conhecer pesca e das manias do rio envolveria conhecimento em bruxaria ou premonição, se perguntavam e formulavam teorias o grupo de pescadores. O velho agiu com naturalidade ao lhe ser apresentado o fruto da pescaria e disse aos homens para que vendessem o peixe na cidade juntamente com os seus a hora em que fossem ao porto da cidade e ficassem com o valor lhes seria mais útil e ele no momento não precisava de valores.

Nos dias que se seguiram o velho vez ou outra era visto sentado em frente a velha cruz de pedra que havia na ponta do mato, resquício por certo de um antigo túmulo ali construído e com o passar dos anos abandonado ruiu e pouco sobrou da construção para se identificar que havia sido um túmulo isso só se dando em função dessa cruz de pedra com alguma inscrição mas que hoje em função das intempéries já não era mais legível os pescadores sabiam de sua existência mas não tinham noção de a quanto tempo fora erguido ali ou quem nele estava sepultado. Pois o velho como que prestava certa reverência a esses mortos nessas suas estadas ali em frente, nesse, para ele, campo santo.

Os pescadores aprenderam a não perguntar ao velho, pois era inútil, quando ele não estava com vontade de conversar simplesmente se calava e não obtendo respostas as suas dúvidas calavam, raramente conseguiam colher alguma coisa, quando às vezes sem nenhuma explicação aparente o velho balbuciava alguma frase, para os homens desconexa ou pelo menos que esses homens com seu pouco alcance cultural não acompanhavam o raciocínio do velho que parecia querer sempre viajar mentalmente mais rápido que os homens da capela. E depois de balbuciada as palavras, voltava o velho a silenciar como se ficasse por horas refletindo sobre a frase que havia dito e dessa forma se integrou o velho a turma de pescadores que agora já não o importunavam tanto com perguntas pois sabiam o quão penoso era para o velho responder e em função desse conhecimento profundo das coisas do rio e das origens da Capela passaram a cultivar um certo respeito e reverência a esse forasteiro, eles próprios pescadores se achando diminuído frente ao grande conhecimento de pesca e da natureza do rio que comprovou para eles nesses dias que ali estava esse misterioso morador.

Um dia, dos poucos em que falou, aconselhou os pescadores a trocar o local do espinhel, indicando outro local e sugerindo que fosse iscado depois do por do sol para que ficasse com isca a noite, assim foi feito e o resultado foi grandioso a colônia de pescadores vivia dias de prosperidade financeira seguindo os conselhos do ancião a quem agora os pescadores recorriam quando qualquer dúvida surgia mesmo sobre qualquer assunto e muitas vezes já não tendo nada a ver com pescaria para se aconselhar com o experiente vizinho.

Mas o mistério da origem do velho continuava e este seguia sua rotina de muitas horas do dia como que orando ou reverenciando os restos de alguém que fora enterrado no antigo túmulo da ponta do mato, túmulo esse que agora ele havia reerguido as poucas pedras que ainda restavam com a cruz de pedra fixada bem no meio dessas pedras e ornada com algumas flores rústicas da mata, em sua base.

Quando dias depois em planejamento futuro, os pescadores disseram que não demoraria a enchente de são Pedro, pois toda a enchente do rio, que eram cíclicas e batizadas com algum nome, a próxima era de nome de santo, disseram esses homens da água que queriam a opinião do velho da melhor forma de estender na enchente as redes para desta forma pegar as melhores piavas, o velho nesse dia falou, dizendo que quando viesse a enchente de São Pedro, que realmente se aproximava, ele já não estaria na Capela, pois sua missão estaria cumprida e ele seguiria seu caminho que o renascimento de uns representa muitas vezes não um ganho mas uma perda com o desaparecimento de outro e mais não disse deixando os pescadores sem entender o verdadeiro alcance ou extensão das palavras do velho e quando algum tempo depois já só, entre eles discutiam o que significaria, um sugeriu que a única explicação seria a caduquice da idade que o levava a pronunciar frases desconexas.

Não fizeram também relação, os pescadores, pois não lhes cabia pensar muito tinham de ir em busca de seu peixe, quando dias depois subitamente e sem doença aparente amanheceu morto um dos seus, imediatamente recorreram a choupana do velho para dividir com ele a sua dor e a encontraram vazia, sem o menor sinal do velho e de seus pertences como se nunca tivesse morado ali, foram até o local do barco e também não estava lá, observaram então no horizonte do rio até onde a vista alcançava e nada a não ser galhos que já começavam a vir empurrados pela enchente iminente, era o primeiro sinal de enchente quando o rio começava a empurrar galhos secos que estavam em sua margem ou haviam caído de árvores durante os dias em que o nível do rio estava baixo e agora quando começavam a se elevar suas águas esses galhos eram guindados e transportados por essas primeiras águas barrentas que avisavam que estava chegando a enchente de São Pedro. Desistiram eles da busca conformados com a perda e foram tratar da outra não menos dolorosa e proceder no enterro deste, dias depois já não se falava mais no velho, caíra no esquecimento e mesmo por que os pescadores precisavam buscar o peixe não fazendo relação entre o surgimento do velho e o desaparecimento, não conseguiam entender aquelas frases em código que esse velho lhes havia balbuciado. Desse velho, a única prova da sua estada no meio deles, foram as pedras que ficaram reunidas na antiga sepultura com uma cruz no meio e umas flores agora secas junto aquelas, única sinal evidente que um dia um velho estranho e desconhecido que dizia coisas desconexas que eles não conseguiam entender, mas que conhecia muito do rio e de peixe, esteve por uns dias morando junto deles na colônia de pescadores da Capela.

Diniz Blaschke - Porto Alegre - 2009

Diniz Blaschke
Enviado por Diniz Blaschke em 13/04/2010
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