Boi Jaguá

BOI JAGUÁ

A menina ostentava toda sua vitalidade e juventude de quinze anos no serviço do dia a dia na beira do rio, lavava não só a roupa de sua família, que era formada além dela, pelos seus pais e mais cinco irmãos menores e também lavava a roupa de mais duas famílias de casas vizinhas a sua e com esse pouco que ganhava ajudava na renda familiar e os valores eram tão ínfimos que mal pagavam a soda cáustica que era comprada para fazer com gordura animal o sabão que era utilizado para lavar essa roupa.

Seu pai vivia da pesca no rio e sua mãe cozinhava e tomava conta da casa e dos seus irmãos menores, enquanto ela passava a maior parte do dia solitária em volta das pedras do rio como chamavam o local onde o rio fazia uma curva e em função desse acidente geográfico jogava a água da corrente em direção a esse terreno rochoso da beirada e ali a água corria com maior força e mais limpa também era o melhor local do rio em um longo trecho de costa barrenta para lavar roupa e era sobre essas pedras, protegida apenas por uma sombra rala de uns poucos galhos de um chorão próximo que ela passava a maior parte do dia, lavando suas roupas e as estendendo nos galhos para então depois de secas as recolher, eventualmente um irmão seu menor a acompanhava, por insistência de sua mãe, mas ela evitava isso, não gostava de mais essa incumbência, pois passava a ter de cuidar do irmão também e isso a distraia e gostava de ficar só com seus pensamentos.

As casas não eram muito distantes, estavam um pouco acima da barranca ao alcance da vista não eram mais que um grupo de dez casebres rústicos, paredes de tábuas e cobertura de capim Santa Fé, melhor capim para cobrir casa não deixava passar uma gota de água mesmo na pior das tempestades o perigo vinha de dentro da casa pois normalmente o fogo era no chão dessas casas que não tinham piso e o calor interno ressecava muito a parte interna do capim e uma fagulha era sempre um risco.

Esses rios caudalosos de grandes corredeiras trazem também em suas águas inúmeras histórias que ás vezes descem rio abaixo outras vezes aportam nesta ou naquela costa e Mariana era este o seu nome já ouvira inúmeras dessas histórias sobre anjos, demônios, monstros e uma em especial lhe despertava a curiosidade que era a história de um pescador que recebera uma maldição e fora transformado em uma grande cobra a que chamavam Boi Jaguá e que vivia nadando nas profundezas do rio durante o dia na forma de cobra e ao entardecer se aproximava da costa e a noite tomava novamente a forma humana original de pescador e assim vagava pela margem do rio até que o dia o levasse novamente como cobra para dentro das águas. Já a haviam alertado para nunca deixar o sabão nas pedras pois o Boi Jaguá comia e algumas vezes de propósito ela havia deixado uma grande barra de sabão bem branca e bem a mostra em cima de uma pedra próximo da água e realmente no outro dia não estava mais lá, seria o Boi Jaguá?

Ela ficava sempre no rio até ao cair da tarde, olhando ao longe, rastreava com o olhar desde ás margens até onde sua vista alcançava, procurando localizar algum sinal, algum movimento na água que pudesse indicar a presença dele, que segundo a lenda teria sido um pescador jovem e formoso que caiu em desgraça ao se apaixonar pela filha de um feiticeiro, um amor proibido e como insistisse com esse amor proibido contrário a vontade do druida, fora estigmatizado com esse triste destino.

Mariana tinha quase certeza que durante a noite ele freqüentava suas pedras o porto onde ela passava o dia, começou a deixar todo dia uma barra de sabão que não amanhecia, estava com a convicção desse acerto que começava a nascer entre eles. Começou a se demorar cada vez mais para retornar a casa no fim da tarde e quando o fazia já podia ver na água o brilho das estrelas e nas noites de lua então nada era mais bonito para ela do que ficar admirando a luminosidade da lua refletida nas águas do rio. Em uma dessas noites teve a impressão que a claridade da lua refletiu em um corpo que saia da água, sentiu um arrepio lhe percorrer a extensão da coluna vertebral e como no mesmo instante piara uma coruja na mata próxima se assustou como nunca se assustara, pois era acostumada com a natureza da beira do rio.

Seus pais começaram a reclamar de suas demoras para retornar do rio e de sua idas à margem em plena noite lhe dizendo do risco que corria com essa história do Boi Jaguá. Ela insistia e isso passou a ser rotina para ela que depois do jantar a noite ia ainda ficar mais um pouco a margem do rio e só retornando já tarde da noite.

Tinha nesses dias Mariana um brilho diferente no olhar um róseo mais acentuado nas faces e um sorriso enigmático que teimava em não sair de seu rosto.

Em determinada noite em que a lua cheia havia saído a pouco e iluminava todo o ambiente prateando, mata, campos e rio o pai de Mariana chegava em casa vindo do porto onde tinha vendido uma enfiada de pintados e nessa tarefa já provara de uma cachaça forte do compadre Mane, tudo por conta desses valores recebidos dos pintados e perguntando a sua mulher por Mariana ela lhe disse em tom queixoso que a filha passa o dia e a noite na beira do rio e que os vizinhos já andam comentando que lhe falta juízo. Impulsionado também pelo álcool ele disse que hoje acabaria com essa história de passeios noturnos no rio e saiu de casa colhendo uma longa vara ao passar pelo salso do oitão da casa indo então na direção das pedras do rio o lugar que sabidamente por todos era o local onde Mariana permanecia. E de longe ao se aproximar do local com a vara em riste já pronta para o uso, para exemplar sua filha e se justificar perante sua mulher, pode ver, iluminada pela lua, não a silhueta de uma só pessoa mas de duas e a medida que aproximava essas pessoas caminhavam em direção ao rio já entrando na água, uma tinha certeza que era sua filha Mariana mas a outra não sabia quem era e sem saber o que fazer parou mas mesmo assim essa dupla não parou continuou entrando rio a dentro agora com a água pela cintura envolvidos por esse mar prateado que a lua refletia. A vara lhe caiu das mãos, só conseguiu dar um grito pelo nome da filha e esses dois pontos agora sumiram na água sentiu um arrepiou no dorso e uma lágrima lhe queimou a face. Achou que podia estar delirando da cachaça, foi até a pedra onde eles estariam antes e havia uma barra de sabão em cima da pedra, olhou mais uma vez para a água que agora estava vítrea como um espelho.

No outro dia e nos que se seguiram muitas buscas foram feitas, muita procura, muito chamado pelo nome de Mariana de quem nunca mais se ouviu falar as pedras ficaram vazias naquele trecho do rio que antes fora ocupado dia e noite por aquela criaturinha incansável em sua tarefa de lavar, estender, secar e recolher roupa. Esse lugar perdera seu encanto ficando vazio como se vida não mais existisse ali e as pessoas evitavam inclusive de freqüentar esse lugar como que respeitando um lugar privado que fora unicamente de uma só pessoa.

Salvo algumas vezes, quando bate a saudade, o pai de Mariana vem a esse lugar, senta em uma pedra e fica observando o rio, pensando em quem teria levado a sua filha e por que ele não buscou saber de seus segredos e do que se passava com ela naqueles últimos tempos, em que ela andava tão estranha. Só então ele observando melhor o formato de algumas pedras dessa formação rochosa se encantou com uma que tinha a mesma forma de Mariana quando ajoelhada esfregando a roupa, como não havia visto essa pedra antes? Estaria ali todo esse tempo? A notícia se espalhou e todos vieram contemplar admirando essa formação natural que reproduzia os traços da Mariana e até hoje essa pedra está lá e todos os pescadores ao passarem por esse trecho do rio dizem “ lá está a pedra da lavadeira, a que desposou o Boi Jaguá”.

Diniz Blaschke

Porto Alegre-RS- 2009

Diniz Blaschke
Enviado por Diniz Blaschke em 13/04/2010
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