Lutas
O dia nasceu, negro como a noite que o antecedeu. A menina levantou-se calma. olhou pela janela. Gostava do dia assim, sem sol, sem cor. Como se tudo que viesse desse dia ficasse bonito diante da feiúra do mesmo. Não tinha tempo pra aprecia-lo, o ônibus não demorava, e o próximo só daí a 2 horas. Mas não podia desistir, tinha que correr todo dia, acordar as 4 da manhã, pegar 2 ônibus e depois caminhar mais 40 minutos a pé, até chegar na faculdade da cidade vizinha.
Depois da aula, pegava o avental e ia fazer suas obrigações na faxina, para compensar a bolsa de estudos que tinha. Trabalhava até as 5 da tarde. Depois vai para um salão de beleza, faz unhas até as 7 da noite pra ter algum dinheiro pra comprar suas pequenas coisas. Depois, mais 2 ônibus, e a noite que cai sem piedade. Chega em sua casa por volta de 9 e meia, e arruma o jantar para o pai, arruma o que dá da casa, e dorme. Sim, ela não tem tempo de ver o dia, nem à noite.
O que vê todo dia é a poeira da estrada que separa seu casebre da cidade. Vê também os olhos cansados do pai, cansados da roça, do dia que também começou as 4, da vida. Ela vê as rugas no rosto daquele homem, que já viveu tanto, e ao mesmo tempo, quase não viveu. Quantos sonhos se acabaram naquelas rugas... quanta vida? A menina olha a janela, vê seu pai saindo com seu "embornal", dentro um pedaço de pão dormido, uma marmita com arroz e feijão, e uma garrafa de café. A menina olha de novo, vê o pai virando a estrada. Pela primeira vez, uma lágrima escorre de seus olhos e cai devagar sobre sua camisa. Ela sempre pediu muito pouco da vida, e quando olha seu pai, pela primeira vez, tem vontade de desistir de tudo, de não pegar o ônibus, de não sair, de não correr mais. Mas ao mesmo tempo, é ele, e só ele que a faz sair de casa toda manhã. Quem sabe ela consegue mudar a vida desse homem. Quem sabe ela consegue sonhar com um fim de vida melhor pra ele.
A menina respira fundo, e sai. Atrás de si, a poeira da estrada, o casebre, e o peso do mundo. A menina sorri apesar de tudo. O ônibus vem no horizonte, bem no horário. Vai conseguir chegar no horário para a prova, vai conseguir passar mais esse dia. Afinal, a vida vale o esforço, pelo simples fato de se estar vivo.