NOBRE HOMEM DE UM BRASIL ATUAL

“SP bate recorde e multa 1 motorista a cada 6 segundos.”

“Superlotação causa morte de bebês no Rio.”

“OTAN anuncia plano de enviar 5 mil militares ao Afeganistão”

“Policial morre em troca de tiros na grande SP”

Estas são as noticias nas capas dos jornais de hoje. Todos os dias, enquanto espera o primeiro ônibus para o trabalho neste antro de vidas que vem e vão, Hudson para em frente a banca próxima ao ponto e dá uma olhada nas capas de todos os jornais, desde o mais caro que conta fatos de diversos países, até o mais popular que traz somente informações regionais. Não tem dinheiro para comprar nenhum deles, mas olhar sem tocar não é nenhum crime, pelo menos não conhece nenhuma lei que diz isto, afinal, mal sabe ler e se esforça para juntar as silabas e formar as palavras. Seu Joaquim o dono da banca, um velho carrancudo, sempre o intima para comprar logo ou sair do caminho dos clientes como se fosse um feirante que espanta um cão faminto. Sem ter outra escolha ele sempre abaixa a cabeça e volta para o ponto de ônibus que, nesta hora, sempre tem uma superlotação de pessoas se apertando que, como se fossem robôs pré-programados, esperam sedentas pela condução todos os dias numa rotina infinita. Quando finalmente o ônibus chega, tem que correr, empurrar e lutar para conseguir entrar na condução antes que lote e torcer para não correr o risco de ficar pendurado na porta, caso contrario, terá que esperar pelo próximo e se atrasar para o trabalho como já acontecera anteriormente.

Dentro do ônibus a situação não é melhor, o aperto é tão forte que as vezes se tem a impressão de que não está mais com os pés no chão e será levado pela onda humana que se alastra em seu interior. Com empurrões e cotoveladas, finalmente consegue descer do veiculo para a segunda parte da sua jornada de ida. Agora, rumo ao metrô da cidade, tem que correr outra vez e consegue entrar quase no momento em que a porta do vagão estava fechando. A viagem não é tão diferente da anterior, o mesmo aperto, as mesmas dificuldades, só que agora um pouco piores por estar num lugar mais abafado. Por fim, se inicia a terceira parte que é outro ônibus tão cheio quanto o primeiro, mas neste ponto existe um outro fator: a cidade fede a esgoto.

Finalmente chega ao trabalho e passa correndo pelo seu encarregado que pragueja alguma coisa sobre atraso, coloca seu capacete, guarda sua mochila e se dirige para a obra. Durante o tempo de trabalho o sol refletido no asfalto e nas chapas de metal faz com que a temperatura seja quente como um inferno. A hora do almoço finalmente chega e Hudson pega sua marmita preparada por sua esposa, o mesmo humilde feijão, arroz e ovo que a esta hora está azedo devido a temperatura. Sem ter outra opção, come assim mesmo como faz todos os dias no alto da construção enquanto observa pessoas bem vestidas em carros novos andando como formigas na rua lá embaixo, indo e vindo para restaurantes caros onde servem comida da boa e da melhor que nunca em sua vida experimentou. Ao termino da refeição feita as pressas, continua o trabalho até ser abordado por seu encarregado na obra, um homem bem de vida que não da a mínima para a vida de qualquer trabalhador. Ele diz que o trabalho não está rendendo e que haverá cortes, advertiu Hudson a ficar atento, pois ele poderia estar na lista dos demitidos. Calado, Hudson volta ao trabalho árduo se esforçando mais para não fazer parte da “lista dos demitidos”, sempre foi um bom trabalhador e não entendia por que poderia estar em tal lista, pensa que talvez seja, como sua mãe costumava dizer, fosse mais uma provação de deus em sua vida, mas se deus não está satisfeito com o lixo que sua vida era, então talvez não merecesse o paraíso no final.

A jornada de trabalho finalmente termina e se inicia outra jornada de viagem, os mesmos dois ônibus e o mesmo metrô, a correria e o aperto não são diferentes, porém a humilhação é bem maior, pois tem que aturar quieto os comentários das pessoas o evitando e falando entres os dentes sobre seu odor. Reclamam em voz baixa de como um peão de obra fede, sem ter coragem para encará-lo nos olhos por que nunca trabalharam e provavelmente nunca vão trabalhar em uma construção civil abaixo de um sol escaldante em suas vidas medíocres.

Ao chegar em casa, é recebido calorosamente por sua esposa que grita e xinga para toda vizinhança escutar que precisa de dinheiro para comprar comida e pagar as contas, a luz já foi cortada a dias e a água está prestes a ser cortada também, as crianças estão com fome e ficando desnutridas. As crianças! Sim, as crianças! As quatro que estavam dormindo, levantam-se chorando devido a discussão aos berros. O mais novo vem em direção ao pai, mas Hudson já aborrecido com toda a situação, grita com a criança que volta chorando para o quarto. E assim, Hudson deita-se no sofá surrado da sala e passa mais uma noite em claro pensando em sua vida sem sentido, como tem passado varias outras noites durante o decorrer do ano.

O dia seguinte não é tão diferente, sai de casa enquanto a esposa ainda dorme o sono dos desesperados, pensa em se despedir dos filhos, mas desiste lembrando-se da noite anterior, havia semanas que não conseguia ver os filhos acordados e quando tem a oportunidade acaba sendo a base de gritos. Pára em frente a mesma banca do seu Joaquim, pega os mesmos ônibus e o mesmo metrô, entra na mesma obra com o mesmo encarregado, pára na hora do almoço, porém hoje não tem uma marmita para se alimentar. O trabalho árduo termina, é chamado de canto e recebe a noticia de que é inevitável, mas a empresa está cortando seus gastos e ele é um dos que estarão desempregados amanhã. O encarregado, fingindo que é um grande amigo, da um tapinha em suas costas e diz que não será difícil arrumar outra obra para trabalhar. Sem ter forças ou condições mentais para fazer suas objeções, Hudson abaixa sua cabeça e vai embora.

Vagando pela rua e observando o vai e vem de pessoas que se destroem e se consomem na corrida contra suas próprias vidas, ele encontra o caminho de volta, mas não vai para casa, indignado, junta seus últimos trocados e entra num bar para tomar um “drinque”. Com seu dinheiro árduo que iria utilizar no ultimo ônibus dá para comprar somente meia dose de preciosa e reconfortante cachaça, o álcool nos últimos dias tem lhe deixado mais tranqüilo para enfrentar esta vida maldita que agora se arrepende de viver. Assiste o noticiário na TV do bar enquanto aprecia cada ml da bebida como se fosse o ultimo, no aparelho velho e defeituoso o que se ouve é que o governo tomou decisões drásticas e devido a isso o preço do arroz e do feijão vai subir na próxima semana.

Cansado desta besteira toda que encontrou nesta terra, decide voltar para o seu lar para enfrentar aquele dragão faminto chamado família. No caminho que agora faz a pé, encontra vários tipos de pessoas seguindo e desperdiçando suas vidas da maneira que entendem. Vê alguns jovens usando drogas na calçada apenas a uns cinqüenta metros de uma viatura da policia, algumas prostitutas na esquina, alguns mendigos pedindo esmola e outros dormindo sob papelões e jornais. Jornais! Sim, sempre prezou pelas noticias mesmo que elas não fizessem nenhum sentido para ele. O que mais queria era voltar para sua terra, pois lá as dificuldades não seriam menores, mas aquela velha decrépita que se chama esperança estaria sempre por perto.

Ao virar a esquina se depara com a cena que o fez sair desta miséria que vive atualmente e que o fez não voltar mais para sua amada terra. Sendo obrigado a entregar sua carteira, um velho senhor muito bem vestido é assaltado por um jovem portando uma faca. Percebendo que o jovem está alterado por drogas ou o que quer que seja e provavelmente irá ferir o velho, não pensa duas vezes e vai ajudar. Corre e empurra o jovem que acaba derrubando o velho e entrando em combate com Hudson, depois de alguns socos e pontapés o herói consegue tomar a faca e o garoto covardemente corre para sua toca nos becos. Antes mesmo que Hudson conseguisse ajudar o velho no chão, a viatura que a pouco tinha visto chegou, provavelmente alertada por alguém que vislumbrou a cena, com os faróis ofuscantes nos olhos de Hudson, sacaram suas armas e mandaram o “vagabundo ladrão” largar a faca. Na adrenalina do combate, Hudson tentou dar um passo a frente para explicar o que acontecera, mas não chegou a dizer nada, cinco disparos o fizeram cair de joelhos cuspindo sangue enquanto os homens avançavam como cães raivosos que cercam um rato indefeso. A única coisa que veio em sua cabeça foi o arrependimento de não ter se despedido dos filhos e de não ter dado um ultimo beijo em sua esposa.

No dia seguinte o ponto de ônibus estava com uma pessoa a menos. A grande metrópole abarrotada de pessoas, que em sua grande maioria nem sabem por que vivem, não sente a falta de um homem, pois com certeza haverá outros cem para ocuparem seu lugar. E na banca de seu Joaquim, os jornais trazem as noticias de sempre com exceção de uma:

“Marginal é baleado e morto enquanto tentava assaltar advogado”